Há alguns anos, o rabino Ariel Kleiner e eu liderávamos juntos um grupo de estudos da parashá com midrash e arte na sala de estar da minha casa. Logo na segunda semana do projeto, nos deparamos com parashat Nôach, que conta a história da Arca de Noé e que lemos esta semana novamente. O rabino Ariel e eu tínhamos entendimentos radicalmente diferentes de como o texto bíblico se relacionava com a realidade contemporânea. Para mim, focando na decisão Divina de destruir o mundo por meio  de um dilúvio, esse era um alerta para a nossa sociedade de como o comportamento irresponsável de uma geração tinha levado o planeta à sua quase-destruição; para ele, focando no final da história, quando as águas baixaram e Noé, sua família e os animais desceram da arca, essa era uma história sobre esperança, um exemplo de como, mesmo após as piores catástrofes, existe a possibilidade de reconstrução.

Bem no espírito dos debates rabínicos, a verdade é que nós dois tínhamos razão! Essa história da Torá é tanto sobre destruição quanto sobre reconstrução; é um alerta e um sinal de esperança —  e nesses dois aspectos, profundamente necessária nos nossos dias. 

“A terra tinha se corrompido frente a Deus e tinha se enchido de violência” [1] parece uma descrição do nosso panorama atual: a realidade em que vivemos está perigosamente próxima a desastres, seja pelo esgotamento dos recursos naturais, pelo acirramento dos conflitos sociais e internacionais, ou pela nossa incapacidade de demonstrar empatia pelo outro quando quadros de crise exigem ações coordenadas, seja pelo coronavírus ou por catástrofes naturais. Temos perdido nosso senso de responsabilidade com o coletivo, do qual a recusa em usar máscaras em certos segmentos é apenas uma manifestação, como bem indicou Yehuda Kurtzer em um artigo recente [2]. A devastação ambiental bate recordes a cada ano, sem que consigamos diminuir a velocidade com que destruímos os recursos naturais. Depois de seis décadas em que parecia que o mundo tinha aprendido uma lição das tragédias da primeira metade do século XX e buscava frear nacionalismos radicais, movimentos neonazistas e outras correntes baseadas no ódio ao diferente, incluindo muitos movimentos antissemitas, têm reaparecido em diversas partes do mundo. As democracias liberais, baseadas na sociedade civil e no respeito às instituições, também parecem viver uma profunda crise. O sistema multilateral de relações internacionais, que procurava evitar novos conflitos pela cooperação entre as nações, está desmoronando e aumentam as tensões entre as principais potências. Vista por essa perspectiva, nossa situação é desesperadora.

Na tradição judaica, no entanto, o desespero dá lugar à possibilidade de t’shuvá, a transformação das nossas condutas, que possibilita nosso retorno à melhor versão de nós mesmos. Apesar de reconhecer nossa tendência a sermos seduzidos por nossos olhos e corações, há um otimismo inerente à visão judaica de mundo, de que reformaremos nossas condutas e, nesse processo, ajudaremos a transformá-lo. O rabino Ariel tinha razão: a história do Dilúvio não termina com a destruição do mundo, mas com a sua reconstrução e com a esperança, de uma vida muito diferente. Assim,  a Torá não permite que o desânimo pelo estado atual das coisas nos leve a desistir: não permitiu na geração de Nôach e continua não permitindo nos nossos dias.

O ciclo de leitura da Torá está apenas começando — oferecendo a todos nós uma nova oportunidade de nos reencontrarmos com o texto central da nossa tradição e, por meio desse encontro, buscarmos transformar o mundo em um lugar justo para todos.

 

Shabat Shalom,

Rabino Rogério Cukierman

 

 

[1] Gen. 6:11

[2] “Brooklyn’s Anti-masking Protests Betray a Broken Culture”, disponível em: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/10/brooklyns-anti-masking-protests-betray-a-broken-culture/616694/