Shavuót: muito além da “Festa das Regras”

Feche os olhos por um segundo e imagine um bom álbum de casamento. Lá deve ter fotos dos noivos se preparando, um clima descontraído de quem está à espera de algo que quer há muito tempo. Lá estão também os daminhos, dançando naquelas roupas lindas que crianças usam em festa. Uma foto em close mostra as alianças. Mais pra frente, tem muitas fotos da cerimônia, detalhes das mãos dos noivos com os dedos entrelaçados, da lágrima correndo pelo rosto do noivo, da noiva secando-a com cuidado. Quando chegamos às fotos da festa, ficamos suados só de olhar para a alegria e a animação das danças judaicas. As comidas, as bebidas, os chocolates da saída… não faltou nada no álbum.

Para o porta-retrato, no entanto, os noivos tiveram que escolher uma única foto — e a que acabou sendo escolhida foi a dos dois dizendo “Sim!” ao mesmo tempo em resposta à pergunta do rabino se eles tinham certeza de que queriam mesmo se casar. Não tinha sido o momento mais emocionante para eles, certamente não era um bom resumo da festa. Mas era um foto icônica, ainda mais pelo inusitado da pergunta e por terem respondido ao mesmo tempo. 

Agora, imagine que, daqui a 50 gerações, as pessoas queiram entender como eram casamentos no começo do século XXI. Os álbuns de foto já estarão totalmente decompostos, mas o vidro e a moldura protegerão a foto no porta-retrato e é do “Sim!” dito junto que todos falarão naquela época. Os arqueólogos do futuro tomarão aquele momento icônico como resumo de uma experiência muito mais complexa como se fosse sua melhor aproximação. Na educação infantil do futuro, quando quiserem ensinar sobre a diferença entre “sim” e “não” usarão a foto de casamento passado que foi salva pela moldura.

Neste final de semana comemoramos a festa de Shavuót que, na mente rabínica, se tornou o feriado em que celebramos a entrega da Torá para o povo judeu. Um momento mágico, de revelação do Divino em Suas múltiplas formas, vivenciado em um festival de emoções e de sensações descritas em detalhe no texto da Torá. E, ainda assim, temos muitas dúvidas sobre o que aconteceu lá. Quem estava presente? Por que temos relatos discrepantes sobre o que Deus realmente disse naquele momento? O que efetivamente foi revelado?

Esta última pergunta parece especialmente relevante: o que recebemos no alto do Monte Sinai? Por séculos, comentaristas têm debatido o que exatamente é esta “Torá” que foi entregue no Monte Sinai. De um lado, há os minimalistas que dizem que foi apenas os Dez Mandamentos; de outro, os maximalistas defendem que foi toda a tradição judaica.

Assim como no caso da foto do casamento, a ideia de que Shavuót celebra a entrega das Tábuas da Lei “pegou” e deixou marcas na nossa comemoração da festa. Nas sinagogas, lemos os Dez Mandamentos e nas escolas, não são raras as vezes em que aproveitam este momento para negociar os “combinados de cada turma.” Shavuót, nessa perspectiva, virou a “Festa das Regras.” Muitas vezes, escuto educadores falando que o povo, ao sair do Egito, era um grupo desunido, desestruturado depois de viver séculos sob opressão. Nessa leitura, apenas com um conjunto de leis claras aqueles grupo desunido poderia se tornar um povo.

Para mim, no entanto, o que transformou os hebreus em um povo coeso foi um sonho comum e o entendimento de que todos compartilhavam os mesmos valores, contavam as mesmas histórias sobre seus antepassados, conferiam os mesmos valores para seus atos cotidianos. Por isso, vejo a Torá como muito mais do que apenas os Dez Mandamentos ou um compêndio de regras pré-definidas e impostas. Ela é a reunião das histórias sagradas do nosso povo, uma enorme coleção de narrativas e valores que tem o poder de informar cada ação nossa e de determinar como nos colocaremos frente ao mundo em todas as situações. Ela continua crescendo, conforme o judaísmo vai sendo encontrado por novas gerações, que trazem suas próprias experiências, curiosidades a ansiedades. Ela é resultado das interações de Deus com o povo judeu, geração após geração, cada nova turma recebendo, alterando e transmitindo interpretações e releituras. 

A verdade é que me incomoda quando Shavuót é reduzida à “Festa das Regras”. Ela é a festa que celebra a forma judaica de aprender e de ensinar, baseada no diálogo com o texto, entre educadores e educandos e, principalmente, com o mundo. Nada expressa tanto esse conceito como Ticun de Shavuót, especialmente quando é desenvolvido da forma como a CIP tem feito há 13 anos: mostrando, na prática, que para se aprofundar na tradição judaica não há nada melhor do que construir pontes entre grupos sociais e religiosos, que nos permitem visitar novas práticas espirituais e pontes que nos dão acesso a novos conteúdos. Este ano, em formato on-line e organizado em parceria com sinagogas do país todo, não será diferente! Preparamos uma programação intensa, com muitas opções para todos os gostos, buscando refletir as diversidades internas do mundo judaico e do próprio judaísmo — agora só falta você!

Muito além da “Festa das Regras,” venha comemorar conosco a “Festa Judaica dos Diálogos”! Neste sábado, dia 30, a partir das 18h30 pelo site www.shavuot.com.br 

Nos encontramos lá!

Shabat Shalom,

Rabino Rogério Cukierman