Amores e fraturas nas nossas famílias

Uma das coisas que mais me encanta nas histórias da Torá é a forma como a nossa tradição não evita apresentar nossos ancestrais como pessoas verdadeiras, com suas contradições internas, que acertavam e erravam, às vezes ao mesmo tempo. Da mesma forma, nossos textos sagrados refletem relações humanas, especialmente as relações familiares, em toda a sua complexidade, com conflitos, traições, injustiças, mas também com momentos maravilhosos de generosidade, de amor profundo e de luta pelos injustiçados. 

Nas últimas semanas, lemos histórias complicadas para a família dos nossos patriarcas e matriarcas. A pedido de Sará (que recebe o apoio de Deus em seu pedido), Avraham expulsou Hagar e o filho deles, Ishmael. Em seguida, sem consultar sua esposa, Avraham escutou a ordem de Deus e levou o filho deles, Itschak, para ser sacrificado. Alguns midrashim contam que, quando Sará escutou que seu marido havia levado o único filho dela para ser sacrificado, o terror e a tristeza fizeram com que ela falecesse imediatamente, sem saber que Itschak havia sido poupado [1].

A parashá desta semana, Chaiei Sará, começa com os impactos da morte da nossa primeira matriarca. Refletindo, novamente, a verdadeira intensidade das nossa relações humanas, o texto nos conta como Avraham se abateu com a perda de sua esposa [2] – apesar de esta não ser a primeira morte da Torá, é a primeira oportunidade em que a Torá nos fala sobre alguém ficar enlutado pela perda um parente próximo.

Nas próximas semanas, leremos sobre complicações na relação entre a segunda geração desta família, Itschak e Rivcá, em particular no que tange ao relacionamento de seus filhos. Nesta parashá, tomamos conhecimento do momento em que os dois se conhecem: quando Rivcá desce do seu camelo ao vê-lo à distância [3] e como ele levou-a à tenda de sua mãe, tomou-a para esposa e amou-a [4] – a primeira vez em que a Torá nos conta sobre o amor entre um casal. Muitos comentaristas discutem a ordem dos verbos: se o amor não deveria vir antes do casamento e apontam para um tipo de amor relacionado à parceria do dia-a-dia, que se desenvolve ao longo do relacionamento e que se soma ao amor que havia anteriormente.

No final da parashá, Avraham também falece, aos 175 anos. Em seu enterro, Itschak reencontra seu meio-irmão, Ishmael, que havia sido expulso pelo pai deles. 

Nas histórias da nossa parashá, entre Avraham e Sará, entre RIvcá e Itschak, entre Avraham e seus filhos, Itschak e Ishmael, o amor é a chave da superação dos conflitos. Seres humanos são criaturas complexas, que reagem de formas, algumas vezes, imprevisíveis e inexplicáveis. Certas crises são facilmente superadas com um toque de bom senso; para outras, temos que engolir o ego e dar o primeiro passo para reconstruir relacionamentos fraturados. Nas relações mais tranquilas e naquelas mais tumultuadas, o amor é a chave que possibilita e dá significado ao que construímos em parceria, em particular aos nossos relacionamentos familiares. Percebemos o amor no choro de Avraham ao perder Sará, no carinho que o texto deixa claro entre Itschak e Rivcá, no reencontro de Ishamel com seu meio-irmão e com seu pai. Exemplos dos quais precisamos aprender e exercitar nas nossas próprias rotinas.

Que este seja um shabat de muito amor, de encontros e de reencontros, em que saibamos reconhecer a importância daqueles que nos são mais próximos e queridos em toda a sua complexidade e beleza.

Shabat Shalom!

Rabino Rogério Cukierman

[1] Veja, por exemplo, o comentário de Rashi para Gen. 23:2.

[2] Gen. 23:2.

[3] Gen. 24:64.

[4] Gen. 24:67.