Apegar ou desapegar?

Nossos tempos transmitem uma tensão na hora de considerar o apego e o desapego. Por um lado, ouvimos e lemos sobre a importância de parar o materialismo, o consumo, o shopping. Deixar de se enganar com a ilusão de que o que temos diz algo sobre quem somos. Lembrar que saímos do mundo como chegamos, nus. Nem as roupas, nem os carros, nem as contas bancárias, nem as propriedades, que tenhamos ou percamos, farão diferença, nem nos farão melhores, mais felizes, mais justos, mais dignos, nem mais lembrados. 

Por outro lado, o desapego de tudo parece se assemelhar com o desinteresse, com a apatia e até com certa irresponsabilidade. Como se o desapegado de tudo dissesse: ”nada é meu afinal de contas, nem os bens, nem as virtudes, nem as qualidades, nem a história, nem a vida. Olhando para a imensidão do espaço e para a infinitude do tempo sou um detalhe passageiro e insignificante que nada possui realmente”. Esta postura de desapego total evita qualquer egoísmo mas também qualquer empatia, qualquer envolvimento ou ação em prol de qualquer causa. Até poderia acabar desprovendo a vida de sentido. 

Então, qual seria a atitude recomendável? Se apegar ou se desapegar?

A parashá da semana conta um antigo ritual que poderia esconder uma solução.

Uma vez que os judeus voltaram à terra de Israel, a cultivaram e começaram a aproveitar seus frutos, assim que apareciam os primeiros deviam ser colocados numa cesta, levados ao templo, e entregues nas mãos do Cohen. Naquele momento cada um deveria recitar uma fórmula que lembrava a história passada. Essa lembrança devia incluir os momentos de pobreza e incerteza e a gratidão pelos frutos obtidos. Mas o mais destacado é um detalhe sutil:  a pessoa devia falar em singular sobre a história que o precedeu. Devia dizer “meu pai foi um arameu fugitivo…” ao se referir a aos patriarcas. Ou seja, tratava-se de uma ato de doação dos primeiros frutos que lembrava a precariedade passada para promover a gratidão e a humildade diante das conquistas presentes. Só que a ação consistia em se desapegar e se apegar ao mesmo tempo! Desapegar-se dos frutos e das conquistas próprias atribuindo elas a Deus e eles ao bem público do Templo. Ao mesmo tempo devia se apegar à história de um modo individual, se apropriar de patriarcas ancestrais, de tempos distantes, como se fossem os próprios pais individuais, e como se sua história fosse a nossa história pessoal. Desapego material e apego histórico. Desapego a conquistas pessoais e apego ao vínculo maior. Talvez essa seja a fórmula mais saudável, honesta e verdadeira.

Que possamos reconhecer nosso “sermos parte” da humanidade, da sociedade, do povo de Israel, de suas tradições, valores e jornadas em forma pessoal. Apropriando-nos com sentido, orgulho e responsabilidade de cada conteúdo desse pertencimento, de cada momento. Cuidá-lo, desenvolvê-lo, transmiti-lo.  Que possamos nos desapegar do engano de que possuímos algo do que temos ou somos, freando assim as disputas pelo poder, para dar espaço à solidariedade, à humildade e à responsabilidade de compartilhar o mundo.

 

Shabat shalom

Rab. Dr. Ruben Sternschein