Mezuza: mitos, aparências, verdades e símbolos

Costuma-se pensar que a mezuza é colocada para proteger as casas. Alguns vão mais longe nessa associação e assinalam como sua origem a décima praga. Nela , conta a parashá da semana, os hebreus são alertados a marcar os batentes de suas casas para que, ao passar a praga, ela pule e salve os primogênitos hebreus.

Entre tanto, nunca mais nas fontes judaicas de todos os tempos, apareceu qualquer alusão a este ato de marcação das portas no Egito como tradição a ser mantida ou mitzva a ser cumprida. As pragas e toda a história do êxodo, junto a todos os valores e ideias que dele se derivam, ficam contextualizados na festa de Pessach. Os batentes aparecem de novo numa mitzva absolutamente desligada destes episódios, de colocar as palavras prescritas no braço, entre os olhos e nas mezuzot (batentes).

Resumindo os dados formais: 1) mezuza significa literalmente batente. Somente após o mandamento tardio de colocar as palavras prescritas nos batentes ou mezuzot, a prática dessa mitzva que acabou sendo prescrita como a fixação de  uma caixinha que guarda um pergaminho com os primeiros dois trechos do shema nos quais é mencionada, ficou associada à palavra batente e assim também a própria caixinha. 2) não há qualquer menção a relação alguma com proteção ou com a noite prévia à saída do Egito.

Todavia, o desenvolvimento dos símbolos e representações na tradição judaica, permite-se continuar andando através dos séculos e muitas vezes desligado das fontes originais. Especialmente no que se refere a interpretações populares e pessoais. Assim, existe quem associou a noite do Êxodo na qual  a marcação das portas salvou quem nelas morava com a marcação através das “ mezuzot” proscrita mais tarde e acabou concluindo que as caixinhas fixadas nos batentes protegeriam como no Egito.

Nesse contexto de interpretações particulares de símbolos e representações, uma vez esclarecido que nada disto está mandado nas fontes judaicas, gostaria de propor uma alternativa.

O batente representaria a fronteira ou a ponte entre o “dentro” e o “fora”. De uma casa, de uma pessoa, de uma família, de uma sociedade.

Existem pessoas que se comportam muito bem em público.  São respeitosos dos modos, sustentam discursos sobre ideias e valores que a maioria aprova e até participam de atos públicos em prol deles, como manifestações, ONGs, campanhas, e sancionamento de leis. Porém, são fracos na hora de aplicar tudo isso a sua vida pessoal com seus próximos. É o caso de ativistas em prol da defesa de direitos humanos, proteção da mulher e combate à violência familiar, que batem em seus  filhos e esposas. No outro extremo se encontram pessoas, famílias, sociedades, que apenas cuidam dos próximos conhecidos e vêm em todo desconhecido um alvo permitido de insensibilidade total. Pessoas que defendem seus filhos, mas podem atacar os dos outros e passar indiferentemente do lado de crianças sofrendo. Guardando as devidas proporções, nazistas matavam crianças judias mais rápido na véspera de natal para poder chegar em tempo a compartilhar a noite da generosidade com seus filhos.  

Ambos parágrafos da Torá, mesmo que não associados entre si em qualquer lugar, representariam o dever de nós nos protegermos a nós mesmos e a todos os que estão à nossa volta, dentro e fora, mais perto ou mais longe, de nossas ideias , sociedades, famílias ou casas. Proteger de nossa possível inconsistência e incoerência. A mitzva de mezuza nos diria: “pegue seu melhor standard e aplique-o onde você é mais fraco. Se consegue ser sensível com os próximos, seja-o também com os alheios. Se for melhor em público, lembre dessa capacidade ao voltar a casa. Olhe para a  mezuza e leve sua boa prática de um espaço para outro. A proteção não é mágica. Está na sua própria vinculação do dentro com o fora. De fazer dos alheios próximos e de se sentir olhado pelo público também em casa.

 

Shabat shalom

 

Rab. Dr. Ruben Sternschein