Na tarde de Iom Kipur, leremos a história de Jonas. Ioná ficou conhecido por sobreviver na barriga de um grande peixe, provavelmente uma baleia. No início da história, Jonas é convocado para salvar os habitantes de Nínive, mas o profeta foge para dentro de um barco. Quando, então, começa uma tempestade, Jonas desce para o porão da embarcação e dorme. Talvez este seja o motivo principal da escolha do texto para a leitura no Iom Kipur. Todos nós somos Jonas e precisamos despertar deste sono.

 

A inovação teológica mais importante do judaísmo foi a noção de que existe apenas um Deus. A ideia do monoteísmo, contudo, não foi introduzida de maneira imediata. 

 

Segundo os historiadores da religião, os proto-Hebreus acreditavam que existiam diversos deuses, mas o Deus de Israel era mais poderoso que os demais. Essa crença se expressa em passagens bíblicas como “Quem se compara a Ti entre os deuses, Adonai?” (Êxodo 15:11). 

 

Em uma segunda etapa de desenvolvimento filosófico religioso, teríamos passado pelo dualismo, uma crença de que além de Deus haveria uma outra força responsável por tudo de ruim que acontece no mundo. Expressões desta figura aparecem nas descrições da Cabalá, a mística judaica, como o satán, um diabo mitológico judaico, ou o gueinóm, o inferno. 

Somente mais tarde, nossos antepassados teriam aderido a um monoteísmo puro.

O monoteísmo não veio sem sua carga de dificuldades teológicas. Se acreditamos em um único Deus, todo o bem que existe no mundo se origina neste Deus, e todo o mau também. O profeta Isaías expressa essa convicção quando diz: “Deus cria a luz e a escuridão, faz a paz e cria o mau” (45:7).

 

Esta unidade divina, no entanto, não deve ser confundida com uniformidade. Dizer que Deus é um, é diferente de dizer que Deus é uniforme. Dizer que Deus deseja nossa unidade ou harmonia não significa que Deus espera de nós uniformidade. O Deus único criou um mundo diverso para nos ensinar a ética do convívio. 

Se nossa maior contribuição teológica foi o monoteísmo, nossa maior contribuição social foi o monoteísmo ético. Segundo esta noção, nos aproximamos de uma dimensão mais sagrada da vida na medida em que nos comprometemos com a ética.

 

Na busca do ético, o monoteísmo passa a não somente apreciar a diferença, como a ver nela ferramenta essencial. Quanto mais amplos forem os debates sociais, maior será a expressão ética dos valores sagrados. A unidade de Deus se expressa na somatória das diversas vozes da sociedade.

 

A história de Jonas não é a única vez na literatura bíblica que vemos profetas tentando escapar de suas responsabilidades éticas. Quando Deus convoca Moisés para retirar o povo do Egito, o líder tenta se esquivar alegando problemas de fala. Quando o profeta Jeremias é chamado por Deus, responde que é jovem demais para a função (1:6).

 

Nós também estamos sendo convocados por Deus diariamente e nos escondemos nos porões, alegando dificuldades de fala ou questões de idade. No entanto, é nossa capacidade ética de responder às necessidade da sociedade que nos aproxima, por meio da valorização da diversidade, da unicidade de Deus.

 

A mensagem do Iom Kipur é de que cada um de nós é um Jonas com uma missão única a ser cumprida. Teremos a oportunidade de passar a vida fugindo ou, ainda, poderemos atender ao chamado e assumir nossa parcela de responsabilidade. 

Temos nossas divisões. Somos muitas vezes obrigados a discordar em diferentes assuntos, mas isto não nos deveria impedir de continuar nos respeitando e buscando formas de agir como grupo.

 

Na minha experiência em Londres durante o sabático de três meses no início deste ano, participei de um seminário sobre o papel dos religiosos em uma sociedade fragmentada. 

 

Em função do Brexit, o referendo que determinou a saída do Reino Unido da União Europeéia, aquela sociedade viveu e vive um momento muito duro de divisão. O assunto foi responsável por separar amigos de décadas, sócios deixaram de se entender, vizinhos brigaram e familiares foram excluídos de grupos de WhatsApp.

A Igreja Anglicana e a comunidade judaica da Inglaterra se uniram para discutir qual seria o papel dos religiosos na reparação de uma sociedade fragmentada. A questão colocada era “Como resgatar a noção ética de que o Deus único se encontra justamente na diversidade”. 

 

Enquanto estudava em Londres, pensei muito sobre as consequências das últimas eleições na nossa sociedade brasileira. Infelizmente, cá como lá, a polarização que se criou fez com que muitos ambientes se tornassem tóxicos. Para continuar convivendo, política tornou-se um assunto proibido em determinados lugares. Em outros, a separação foi tamanha que impede, até hoje, que pessoas que se amam muito continuem convivendo de maneira saudável.

Não é possível que os partidos políticos, os times de futebol, as religiões, que foram criados pela humanidade para enriquecer as experiências humanas, sirvam de motivo para dividir pessoas de maneira definitiva.

 

A maneira como representamos o Deus invisível no mundo é nos fazendo muito visíveis. Apenas quando rompemos a omissão e nos tornamos presentes, aproximamos Deus de nossas vidas e das vidas das pessoas à nossa volta. Assim, exercitamos um monoteísmo verdadeiramente ético.

 

Que a unidade de Deus nos inspire a superar o empobrecimento da uniformidade. Que vejamos nas nossas diferenças, oportunidade de crescimento. Quando chegar a tempestade, que tenhamos a coragem necessária para acordar, sair do porão e atender aos chamados de uma sociedade diversa.

 

Que sejamos confirmados no livro da ética do convívio e que seja este o caminho na direção ao Deus único.

 

Gmar Chatimá Tová!

 

Rabino Michel Schlesinger