Os sons do silêncio

Dentre as diversas mudanças que trouxe a pandemia, junto com as trágicas mortes, uma das mais evidentes é a reclusão. Ficamos confinados evitando sair. Nessas circunstâncias experimentamos como a tecnologia, que antes nos alienava, de repente serviu também para nos conectar. Em muitos casos, como único recurso. E começamos a olhar e ver de outras formas. Da nossa casa, tudo se vê diferente. A rotina, a roupa, o rosto, nossas funções sociais e familiares, nossos amigos, nossa comunidade, nossos interesses, nossos desejos e vontades, nós mesmos e o mundo todo.

A mudança de perspectiva fez com que avaliemos e valorizemos tudo de modo diferente. E talvez nos propusemos mudar algumas rotinas, relacionamentos, ideias e valores ao voltarmos após a pandemia. Ficar em casa mudou nosso interior em relação a si próprio e ao exterior. A partir do  interior, olhamos e ouvimos o exterior diferente.  

A leitura da Torá e da haftará do primeiro dia de Rosh HaShaná está repleta de emoções internas, risos e choros que não se ouvem especialmente, vozes interiores, silêncios que falam alto e mudam os cenários externos.

Sara se torna mãe aos 90 anos e sente um riso interior inusitado, que dá a sensação de que todo mundo ri. Se riem “dela” ou “com ela”, é difícil de determinar. Se trata-se de um olhar generoso para o mundo com sorriso, de gerar o sorriso de todos ao imaginar a empatia alheia ou se trata-se de medo, de alienação, de sensação de ridículo ou de ameaça, não sabemos.

O filho se chama Itzchak, aquele que ri. O irmão mais velho, Ishmael, é visto rindo também, e os leitores de tempos passados se debateram se tratava-se de alegria, de abuso, ou simplesmente de pulsação vital.

Hagar é expulsa por Sara. Abraham manifesta seu desacordo e sua compaixão pela concubina e pelo filho Ishamel com ações silenciosas, mas determinantes. Hagar chora em silêncio, mas é ouvida. Ishmael é ouvido ainda antes, apenas pela sua presença firme diante de seus desafios no deserto (“ouviu Deus a voz do jovem porque estava lá”, pelo mero estar ou ser onde estava). E, de repente, se abrem seus olhos e vêem uma fonte de água que talvez sempre esteve lá, mas só quando os silêncios se fizeram eloquentes no interior, se ouviram no exterior e mudaram o cenário —  ou, pelo menos, os protagonistas conseguiram enxergar.

Na haftará, Hana substitui a prática ostensiva e selvagem de sacrificar animais como modo de conexão com o divino pela reza silenciosa: “apenas seus lábios se movimentavam, mas sua voz não se ouvia”. Quando presenciava os sacrifícios, apenas seu corpo estava lá, mas não sua alma. Eram atos feitos por outros, supostamente para ela, mas sem ela. Ela definiu essa primeira reza histórica como “derramar o coração”, ou seja, abrir seu coração para si e desse modo também para os outros. 

Que em 5781 possamos renovar nosso interior a fim de descobrir, compreender, falar, ouvir e enxergar de forma transformadora.

 

Shaná tová,

Rabino dr. Ruben Sternschein