Prédica de Rosh Hashaná

O escritor israelense, David Grossman, se coloca na boca de um personagem muito jovem na novela “Du-Krav”, com a ideia de mostrar que o mundo pertence a ele e tudo caminha a seu ritmo, além da sensação de olhar para os mais velhos e perceber que em algum momento, já foi assim para eles também e agora não mais.

Quando sentimos que o mundo é nosso? Que tudo é alcançável? Que tudo se move ao nosso passo, ao nosso ritmo e que nada de ruim nos acontecerá? Em quais situações e em quais momentos sentimos o contrario? Que o mundo é grande demais, complexo demais, que nos ignora, que nos abandona e que corre a outro ritmo? Que somos vulneráveis a tudo e tudo pode nos acontecer?

Essas sensações têm a ver com idade? Com sucesso? Com estado de animo? Quais são as mais certas? Quais são as mais úteis? Quais são as mais nobres? E quais trazem algo melhor e mais feliz?

Essas perguntas são centrais para a vida, para as atitudes e especialmente fazem sentido em Rosh Hashaná, aniversario do mundo, da humanidade e de nós mesmos dentro de ambos.

Acredito que o judaísmo nos sugere um meio termo, interessante, inteligente e desafiador.

O Salmo número 8 diz: “o que é o ser humano para ser considerado e o filho do humano para ser levado em conta?”, mas em seguida diz também: “o humano é pouco menos que divino”, ou seja, ambas as coisas. O ser humano é quase nada e quase tudo. Insignificante, apenas um detalhe e quase Deus.

O rabino Simcha Bunimde Peshischasugeriu certa vez que deveríamos andar com dois papeis nos dois bolsos da calça. Em um deveríamos escrever a frase que diz: “eu só sou pó e cinzas” e no outro a frase que diz: “o mundo foi criado para mim”. Desse modo, poderá andar com equilíbrio pelos cenários da vida e entre todas as pessoas.

Pirkei avot, entre ambas, estabeleceu: “não há coisa que não tenha seu espaço nem pessoa que não tenha sua hora”. Tudo vale e tem sentido. Único. Também eu, também todos os outros.

Somos detalhe, sim, mas únicos. Por isso é importante dar, receber e possibilitar essa unicidade.

Shimon Perescontou que muitos anos atrás, quando visitou os EUA, o então “candidato” Obama lhe perguntou:

– Se eu for eleito presidente dos EUA, o que poderia fazer por Israel?

E Peres lhe respondeu:

– O melhor que pode fazer por Israel, é ser o melhor presidente dos EUA que você puder ser.

Sempre o melhor que podemos entregar, é ser o melhor de nós mesmos, no sentido mais amplo, com maior abrangência para abraçar tudo, com maior sensibilidade para perceber tudo e assim cuidar de tudo e com a maior sabedoria para compreender tudo.

Ser tudo o que podemos ser e deixar os outros serem o que podem ser, ou melhor, possibilitar que os outros sejam tudo que podem. Com a maior vontade e coragem para querer tudo o que for possível.

Meu pai, falecido há 3 anos, costumava dizer uma frase que me revoltava quando eu era adolescente: “tem que querer o que se pode”.

Como jovem, eu ouvia nessa frase um conformismo que não gostava. Porém com a maturidade, comecei a ouvir nas entrelinhas, que a frase desafia querer mesmo tudo o que for possível, se atrever a ter a coragem de querer o suficiente para tornar possível.

Quanto ao ritmo, cada um tem o seu e pode contribuir com sua unicidade. Se soubermos ouvir. Como os diversos instrumentos de uma grande sinfonia. Assim também as pessoas e suas unicidades.

Alguns deles são como os instrumentos de vento, que te arrastam, te empurram, te levam. Outros são como os instrumentos de cordas que vibram e te fazem vibrar. Outros ainda são como os de percussão, que te chacoalham e outros como os teclados, que conseguem reproduzir todas as vozes e todos os sons.

Podemos tocar com uma grande harmonia toda humanidade, ou ao menos, todos os que estão a nossa volta.

Junto aos filhos, aos vovôs, aos diferentes. Considerar os sons e os tons dos outros, os tempos, os ritmos dos outros, as escalas, as entonações, e assim, buscar a harmonia, o contraponto. Do filho, do neto, do pai, do cônjuge, do rival.

O melhor do outro, o melhor de nos, o melhor possível.

Amigos, o conceito central das Grandes Festas, o trabalho espiritual e social principal é a teshuva. A volta constante, a nós, a busca constante de nós. A fim de achar o melhor.

O rabino Jonathan Sackssugeriu que a palavra teshuvafosse traduzida como volta, por que se trata de voltar a casa. Eu ajustaria para “voltar a se sentir em casa”. No mundo, na sociedade, na comunidade, na família, na personalidade e também no judaísmo.

Se sentir em casa significa ser dono, ou seja, assumir responsabilidades que não temos quando estamos de aluguel ou num hotel de passagem. Se sentir em casa, é fazer mudanças e consertar.

Mas se sentir em casa, é ser parte, reconhecer que existem outros que também convivem comigo dentro da casa, no bairro, na cidade. Se sentir em casa, é se relacionar com proximidade com tudo e com todos.

A CIP quer desenvolver mais e mais um judaísmo relacional, empático. Que se importa com seus valores, com seus vínculos com seus indivíduos. Que os carrega junto, que carrega suas histórias, seus sonhos, seus pesadelos, suas lágrimas e suas alegrias.

Começamos nos perguntando quando o mundo e seu ritmo nos parecem nossos e quando não. Se sentir em casa neles é ser jovem. A teshuva, Rosh Hashaná, nos dá de presente esse retorno constante à juventude. Mas não de modo intempestivo, arrogante ou fantasioso, e sim, disposto a ver os outros e tocar na mesma orquestra.

Que possamos ouvir todas as particularidades de cada membro dela seja no passado, presente e ou no futuro, valorizando-os na sua unicidade, e recebendo e contribuindo para o nosso som único.

Renovar a juventude que escolhe viver para harmonizar e fazer diferença ao mesmo tempo, ser detalhe único, como todos os seres desta grande orquestra que pode ser maravilhosamente sagrada em cada compra.

 

Prédica de Iom Kipur

Embora nos acostumamos a passar grande parte das Grande Festas na gastronomia social, ou seja, reencontrando amigos, completando histórias e falando do que comemos em Rosh Hashaná e o que não comemos em Yom Kipur, as perguntas que trazem estas festas são individuais e mais profundas: Como cheguei até aqui? O que tenho escrito no livro de minha vida?  Quais serão os próximos capítulos? Quando fiz o que realmente quis, quando fiz algo realmente bom ou significativo? Quando quis o bem e se deu mal? Quando não quis suficientemente? Qual o sentido e o valor de quem sou, do que faço e de minha vida?

Nesse sentido gostaria de propor uma pergunta que nos une como coletivo. O sentido de ser judeu. Pergunta básica nem sempre formulada, enfrentada e respondida.

POR QUE SER JUDEU?

– Será por falta de alternativas? Porque nascemos num contexto cultural e o mundo não nos assimila realmente como mostrou o caso do capitão Dreyfuss, acusado e condenado pelo o que não fez, simplesmente por ser judeu, no país da igualdade, fraternidade e liberdade?

– Será que ser judeu é uma genética, um acidente, sem razão e sem sentido, como ser alto ou ter olhos claros?

Até aqui as pessoas que se converteram ao judaísmo seguramente terão vantagem sobre os que nascemos. Elas terão respostas mais elaboradas uma vez que escolheram serem judeus a uma idade adulta.

Existe alguma razão para sermos judeus? Tem algum sentido, algum valor especial?

– Talvez sejamos judeus por respeito a uma tradição. Mas será que isso é suficiente? Porque meus avós foram, porque existe ou pelo mérito de sobreviver…?

Tebbie o leiteiro do violinista no telhado, de Scholem Aleichem, mostrou que a tradição, mesmo que bonita e respeitável, pode ser pobre, miserável, não reflexiva e nem sempre saudável.

O shtetlnos traz nostalgia e carinho, tinha detalhes bonitos. Mas ninguém de nós quer voltar lá. Preferimos nosso mundo, no qual nossos filhos falam línguas, se formam em boas universidades, viajam pelo mundo. Ninguém quer mais um mundo no qual mulheres não votam, pessoas morrem de gripe, e só falamos um iddishgostoso, mas pobre… Nem toda tradição é boa só por ser passada ou por ser nossa.

– Com certeza não seremos judeus pela comida… Ninguém pode afirmar que os Kreplache os Varenikessão melhores que as massas italianas ou o vinho do kidushmelhor que os vinhos franceses, italianos, chilenos e até argentinos…

– Menos ainda podemos assinalar os modos ou o sucesso como uma característica judaica.

Há algo de elegível?! Melhor? Ou tão bom quanto?

As pessoas dirão: valores…, mas quais são?  O que têm eles de melhor ou de único?

Minha resposta é: existem valores sim, e são uns 5-6, que se nem todos são únicos, à forma deles que PODE ser encontrada no judaísmo, funciona, especialmente, ao menos para mim.

A forma que esses valores podem ter para serem praticados, desenvolvidos e transmitidos, funciona ao menos para mim, têm que ser praticados, mas ATENÇÃO: Pode, nem sempre é buscada, achada, enfatizada. Funciona ao menos para mim.

  1. LIBERDADE

Não é só ausência de escravidão. Não estou falando da história de pessach. Falo da denuncia do quarto filho da hagada, acusado de não saber perguntar… Falo da essência deste dia de Yom Kipurcom suas três palavras chave: teshuva,slicha, NEDER. Retorno reflexivo que brinda uma nova resposta, perdão e promessa.

O passado não nos condena irremediavelmente.  A genética, as ações, os hábitos, as virtudes, os defeitos, as forças e as fraquezas, podem mudar. A pessoa pode voltar e responder de outro modo.

Embora Heraclito tenha razão e nunca possamos voltar a entrar num mesmo rio, pois na segunda vez seremos outros e também o rio, ou seja, a situação, a ilusão da teshuvanos permite acreditar que podemos mudar bastante.

Posso perdoar e renunciar a uma magoa, posso me perdoar e renunciar a um habito, a uma fraqueza a um traço. A personalidade como a história me deixa algumas alternativas. Por isso posso prometer. Mesmo sem controlar tudo. (O quadro de Borges e Levinas sobre a morte dos outros, mostram que até temos a liberdade de continuar outras promessas e sermos continuados nas nossas por outros…)

Nenhuma situação é idêntica à outra, mas podemos melhorar na seguinte… Alguns dizem que a teshuvapropõe que na verdade sim, tudo volta o tempo todo.  Só vivemos o tempo todo, as mesmas situações: amor, ódio, solidão, amizades, invejas, conquistas, fracassos, ter- não ter… Aos 5, aos 15, aos 25, aos 55, aos 85 anos… As mesmas situações. Mudam cenários e personagens, mas o essencial é idêntico, para nos dar a liberdade de mudar, na seguinte oportunidade…

  1. EMPATIA

Sabem o que é o mais difícil de fazer em Israel, além de ser primeiro ministro? Dirigir um ônibus ou até um carrinho de neném… Todos têm inúmeras opiniões sobre como deveria se conduzir o motorista, sobre o agasalho da criança, a inclinação do respaldo e assim por diante.

Opiniões muito veementes. Tudo toca todo mundo e muito. Tudo acontece com e para cada indivíduo em Israel. Em minha opinião essa tendência a fazer da historia minha historia, vem das fontes judaicas. Avrahamdiscuteaté luta com o próprio Deus por Sodoma, cidade que nem conhece. Moises se descobre como judeu, depois de ter crescido no palácio como egípcio, ao assumir o sofrimento alheio, dos escravos, como próprio e transformar os outros em irmãos…

Na festa de PESSACH não somos convocados apenas a contar uma história passada de escravos num contexto no qual não conhecemos pessoalmente um só escravo. Devemos sair de nossos próprios Egitos. Da rotina do pensamento e da inércia da emoção.

Ver se aqueles que odiamos ou amamos merecem ainda essas emoções ou podemos ser libertados a outras novas. Revisitar nossas ideias e ver se merecem algum ajuste libertador. Em Shavuot,não lembramos apenas a entrega da tora no monte Sinai, devemos voltar a recebê-la a traves de novas leituras pessoais.

Em Purim,não somos chamados apenas a fantasiar as crianças e sim a buscar os diminuídos de nossa sociedade para redimi-los como nós fomos redimidos naquela narrativa. Assim, o judaísmo acaba se centrando na ideia do ticvun. Mudança e conserto que posso e por tanto devo fazer, nessa historia que é minha.

  1. UNICIDADE

A UNICIDADE de cada indivíduo e de cada momento se deduz do valor anterior, mas também se apoiam em inúmeras fontes judaicas המציל נפש אחת, הלומד מכל אדם… E dai vem à pluralidade o pluralismo: tudo é único, tudo tem valor, tudo pode ser necessário…

  1. CRITICISMO

O judaísmo fala há séculos do que a educação mais avançada proclama hoje: olhar para o mundo, para a vida e para si próprio a partir de uma leitura crítica.

O bom aluno nunca foi na tradição judaica quem repetia melhor o que dizia o professor ou quem decorava melhor o que leu. Pelo contrario. O melhor aluno judaico foi quem não se conformava. Quem perguntava algo critico não esperado pelo mestre.

O conceito de ietzer hara no judaísmo rabínico, na verdade não é necessariamente o impulso do mal. Em muitos contextos é aquela voz que após ter saído de uma reza diz, poderia ter sentido mais. Após sair de uma palestra diz, poderia ter aprendido mais. Após um relacionamento diz, poderia ter amado mais, compreendido mais dignificado mais.

O ietzer haraé aquele aspecto muito judaico que nunca se conforma, pois sempre busca mais e o melhor de tudo. A leitura critica da realidade que vem do estudo crítico e “espelhador” do texto.

  1. JUSTIÇA

Todos julgamos, não apenas os juízes de profissão. Diante de cada história que nos contam, de cada relacionamento, de cada acontecimento na sociedade, na família, na personalidade.

Julgamos sim por que avaliamos e nos posicionamos. Por que estabelecemos diferenças entre o que nos parece nobre e perverso, o que merece ser defendido e o que precisa mudar. Por que não tudo é igual.

Porém outra parte de nos diz: quem somos para julgar outros? Com qual autoridade moral? Em que medida poderíamos nos livrar de nossa parcialidade? Afinal de contas só podemos ver com nossos olhos, a partir de nossas experiências. Todos nós. Também o juiz, também o psicanalista, esta condenado a ver a própria experiência de “mãe” toda vez que ouvir a palavra “mãe”, ou retidão, ou bem, ou sucesso ou fracasso ou amizade.

As fontes judaicas resolvem essa tensão: mostrando-a. existe um mandamento que manda julgar e outro que diz não julgar até estar no lugar do outro, sabendo que é impossível. E acaba dizendo que a justiça é só divina. Ou seja: devemos julgar, para avaliar, para fazer diferenças, para dar sentido ao nosso passo pelo mundo, para diferenciar valores, para melhorar, para fechar etapas e continuar, mas com cuidado, com humildade, como diante de Deus, como a promessa, com a consciência de que sempre seremos parciais, que só temos nossos olhos condenados à limitação da parcialidade humana.

  1. AUTENTICIDADE-TRANSPARENCIA

A religião parece um refúgio para a hipocrisia. A pessoa pode fazer qualquer coisa e limpá-la depois cumprindo rituais… Pode errar, magoar, diminuir e agredir, por que depois pede perdão na sinagoga a Deus em Yom Kipur, repetindo frases sem sentir nem compreender nada…

Nada mais longe do espírito judaico. Ao menos como o entendemos na CIP. Esse não é o espírito verdadeiro do judaísmo no qual acreditamos aqui. Na CIP, no mundo liberal é justamente o contrário. E sempre foi assim. Na bíblia. No talmud. Na filosofia. Na mística. O talmud disse:  עברות בין אדם לחברו אין יו”כ מכפר as transgressões entre pessoas não são limpas pelo dia de Kipur.

Somente a traves dos vínculos humanos. Não existe qualquer magia aqui. A não ser a verdade, a autenticidade, a transparência. Antes ainda a própria Tora tinha dito:תמים תהיה עם אלוהיך seja integro com Deus.

O divino, não é uma via de escape, um velhinho de barba branca que substitui o que não faço , absolve ou resolve magicamente se o suborno com rituais. É aquela voz ou ouvido interior que questiona se realmente perdoei quando disse que perdoei, se realmente amo quando digo que amo, ou se realimente acredito no que digo que acredito.

FINALE:Amigos, o judaísmo pode ser uma mera herança respeitável e bonita, pode ser uma genética sem alternativas, pode ser um ritual vazio que substitui o verdadeiro. Podemos reduzir a pessacha matza, se engorda ou não, se é gostosa ou não, se é digestiva ou não… Ou pode o judaísmo, revelar uma (não a única e não necessariamente a melhor, mas a nossa) forma de ser melhor, sermos nós mesmos. Mais livres, com respeito de hábitos, misérias e rotinas internos, mais empáticos diante de tudo que vemos e ouvimos, mais justos e responsáveis, críticos, exigentes, mas ao mesmo tempo mais humildes e plurais, e acima de tudo: mais verdadeiros nas intenções, nas emoções, nos pensamentos e nas realizações.

 

KOL NIDREI:

Que tenhamos a coragem neste Yom Kipur de buscar e enxergar tudo isso no nosso judaísmo e torná-lo nosso neder. Não mais nidrana la nidrei. Que possamos no próximo ano olhar para trás e dizer: nidrana – nidrei sim!  Nossos compromissos possíveis com nós mesmos, com nossos potencias, com a nossa unicidade e valor, foram compromissos e os conseguimos cumprir.

IZCOR:

Logo mais diremos izcor e lembraremos que a pesar da finitude de nossas vidas, é possível se perpetuar. Assim como perpetuamos nossos queridos, ao lembra-los, continua-los e até aprimorar seu passo, também nossas vidas poderão ser lembradas, continuadas e aprimoradas, por todos os que conseguirmos tocar com nossa unicidade.

Com nossos nedarim, nossos perdoes, nossas liberdades, nossas empatias, nossas avaliações e aprimoramentos, nosso erros, nossas verdades. Que possamos viver e morrer e ser lembrados e continuados assim.

Rabino Dr. Ruben Sternschein