Quando reviver a história é reforçar um trauma

Várias obras de ficção retratam um cenário distópico em que a Segunda Guerra Mundial tivesse terminado de uma outra forma. Atualmente, duas séries desenvolvem essa perspectiva: “O Homem no Castelo Alto” (Amazon Prime) e “O Complô Contra a América” (HBO). Eu me lembro de ter assistido um filme com um roteiro parecido nos anos 1990. Chamava-se “A Nação do Medo” (“Fatherland”, no original em inglês) e retratava a investigação de um assassinato na Alemanha de 1964, ainda sob o regime nazista, que acabava revelando as atrocidades cometidas e encobertas pelo regime, em particular a Shoá.

Às vezes, imaginar como seria o mundo em cenários históricos alternativos nos ajuda a entender melhor o que estamos vivendo hoje. Imagine se no cenário descrito no filme, um judeu tivesse conseguido esconder sua identidade e continuasse vivendo sob o regime nazista algumas décadas após o final da guerra. Pense como seria para ele enviar seus filhos à escola chamada Rudolph Hess, dirigir pela estrada Heinrich Himmler, ir a concertos no auditório Adolf Eichman, passar diariamente pelas estátuas homenageando Adolf Hitler. Imagine como seria se seus melhores amigos considerassem heróis pessoas que ele sabia serem responsáveis pelo extermínio de seu povo – e como seria se a memória dessas figuras históricas fosse considerada “patrimônio nacional.”

Como respondemos quando descobrimos que pessoas que admiramos tinham falhas morais sérias? Que um ator de quem gostamos praticava atos de assédio sexual com frequência? Que uma líder política que considerávamos séria enriqueceu enquanto ocupava cargos públicos? Que um escritor cujas histórias nos encantam também expressou opiniões racistas? Devemos apagar suas memórias, remover suas fotos dos livros de história, suas composições dos nossos sidurim? 

E se não estivéssemos falando de “falhas morais”, mas de atos concretos, crimes contra a humanidade, genocídio e escravização? Isso justificaria que estátuas fossem removidas das nossas praças? Que seus nomes fossem retirados das nossas ruas e estradas?

Na parashá desta semana temos a conclusão de uma passagem que começou na semana passada. Pinchás vê um homem israelita trazer uma mulher midianita para o acampamento e mata os dois. De acordo com a Torá, a resposta de Deus foi elogiosa a Pinchás, apontando sua ação como um exemplo a ser seguido. As camadas de comentários que se seguiram ao longo dos séculos, no entanto, foram bem menos generosas em suas análises destes atos. O Talmud de Jerusalém, por exemplo, afirma que a condenação à violência vem desde os tempos bíblicos e que Moshé e os anciões já tinham condenado a ação. Em outro exemplo, os massoretas, que entre o sexto e o décimo século da Era Comum codificaram a forma como os rolos de Torá são escritos e as entonações que usamos para ler o texto até hoje, estabeleceram que deve haver uma quebra em uma das letras da palavra “shalom” no pacto de paz (“brit shalom”) que Deus estabeleceu com Pinchás. Essa quebra simboliza o choque desses escribas com a ideia de que um pacto de paz fosse o prêmio por um ato da mais profunda violência. Pinchás, apesar de suas ações, continua no texto bíblico, assim como a aprovação expressa por Deus. Os comentários e a apresentação gráfica do texto, no entanto, deixam claro nosso choque e discordância com este tipo de ação. Além disso, essa passagem da Torá serve como oportunidade para reafirmarmos nosso efetivo compromisso com a paz e com a solução de problemas sem apelarmos à violência.

Em várias situações, a tradição judaica nos encoraja a ir além de relembrar nossa experiência histórica e a buscar efetivamente revivê-la. É assim que no seder de Pêssach revivemos a saída de Mitsrayim e nos sentimos pessoalmente libertados, e que na manhã de Shavuot, ao ler a passagem dos Dez Mandamentos, recebemos a Torá novamente. Imaginem, no entanto, reviver episódios traumáticos do ponto de vista pessoal ou comunitário? Imaginem se a cada Tishá BeAv tivéssemos que nos esforçar para reviver as torturas da Inquisição ou que durante a Contagem do Omer precisássemos reviver as tragédias que se abateram sobre os alunos de Rabi Akiva. De alguma forma, é isso que pedimos a pessoas cujos ancestrais foram escravizados, dizimados e oprimidos por algumas das figuras históricas cujos nomes e estátuas aparecem em destaque em espaços públicos; lhes impomos reviver sua opressão a cada vez que frequentam estes espaços.

Que aprendamos da história de Pinchás que não precisamos (nem devemos!) apagar nossa história, mas que é preciso indicar claramente onde, quando e porque recusamos condutas tomadas por nossos antepassados (até por nossos líderes) que não honram os valores que queremos perpetuar.

 

Shabat Shalom

Rabino Rogerio Cukierman