Eu conheço algumas pessoas que, depois de terem passado décadas juntas, acabam morrendo com meses, às vezes dias de diferença. Algumas vezes, eram casais; em outras, eram irmãos ou melhores amigos. A intimidade da convivência contínua fez com que a vida se tornasse insuportável sem a presença do outro; o corpo acaba atendendo ao pedido da alma, se despedindo da vida. 

A parashá desta semana começa com o falecimento de Sará e termina com a morte de Avraham. Apesar de não terem acontecido na sequência [1], a narrativa da Torá aproxima a partida dos nossos dois primeiros patriarcas e nos leva a pensar sobre a relação entre os dois. Claramente, havia uma parceria que levou Sará a abandonar a sua vida e seguir com seu marido em busca de uma terra desconhecida, obedecendo as instruções de Deus. Baseando-nos em histórias da parashá da semana passada, podemos também imaginar alguns desentendimentos entre os dois, como na expulsão de Hagar e Ishmael [2] e no fato de Avraham ter aceitado o pedido de Deus para sacrificar o filho deles [3]. O texto sugere que, no final da vida, eles nem moravam mais na mesma cidade: Avraham estava em Beer Sheva, mas Sará faleceu em Kiriat Arba. Será que, depois de tantos anos de parceria, foi a incapacidade de discordarem sobre temas tão centrais que acabou causando a morte de Sará?

Uma história famosa do Talmud [4] nos apresenta um outro modelo de parceria e conta da amizade entre dois rabinos, Rabi Iochanan e Resh Lakish, que faziam do debate intenso uma marca do seu relacionamento. Depois de uma briga entre eles, Resh Lakish ficou tão magoado que morreu de desgosto; Rabi Iochanan morreu pouco tempo depois, inconformado com a falta do amigo. Rabi Iochanan sentia especial falta dos desafios que Resh Lakish levantava aos seus argumentos, e da forma como, nesses embates, ambos melhoravam sua compreensão da tradição judaica. Nossas discussões, assim como nossas amizades e relacionamentos amorosos, também ajudam, muitas vezes, a definir quem somos —  em especial a forma como lidamos com elas. 

Na semana passada marcamos os 25º aniversário do assassinato de Itzchak Rabin, o primeiro-ministro israelense responsável pelo Processo de Paz de Oslo, e que foi assassinado por um opositor radical. Nesta semana, faleceu Saeb Erekat, o principal negociador palestino no processo de paz com Israel. Rabin e Erekat eram figuras polêmicas: alguns os viam como visionários na construção de um futuro de paz, outros como pessoas dispostas a fazer concessões sem construir antes amplos consensos nacionais, há ainda quem os visse como inimigos, soldados do outro lado de um conflito que já custou mais de uma centena de milhares de mortos. Assim como as mortes de Avraham e Sará, que aparecem próximas na narrativas mesmo tendo acontecido com distância de muitos anos, vinte e cinco anos separam as mortes de Rabin e Erekat, mas elas apareceram próximas no calendário deste ano. Nas décadas que se passaram, continuamos buscando uma paz estável e duradoura entre israelenses e palestinos sem, no entanto, atingi-la. Nossas divergências e a forma como lidamos com elas continuam, em grande parte, nos definindo.

Nossa parashá termina com o reencontro de Itschak e Ishmael, dois irmãos separados por conflitos, no enterro de Avraham. Na morte de seu pai, retomaram a possibilidade de construírem uma relação em vida, mesmo com as discordâncias. Que as memórias de Avraham e Sará, de Itschak e Ishmael, de Itschak Rabin e Saeb Erekat iluminem nosso caminho para avançarmos, apesar das nossas divergências, na construção de uma paz justa e duradoura.

Shabat Shalom

Rogério Cukierman