Baruch she-amar ve-haiá ha-olam”, “Abençoado é Deus, que falou e o mundo foi criado.” Essa frase, parte da liturgia de todas as manhãs, reflete a importância que a fala tem na tradição judaica. A fala tem a possibilidade de criar mundos e de transformar realidades. É o ato de falar a benção sobre as velas que estabelece o início do shabat para aquela família, e é a afirmação (e aceitação) dos votos nupciais que formalizam a união do casamento; as assinaturas na ketubá simplesmente testemunham o ato estabelecido pela fala. Muitas vezes, negamos uma nova realidade até que tenhamos a coragem de verbalizá-la em voz alta e, dessa forma, a reconhecemos e a aceitamos.

Ao mesmo tempo, a fala tem a capacidade de destruir mundos. No Talmud, os rabinos equiparam humilhar alguém em público a matar aquela pessoa. [1] Em Iom Kipur, entre a lista de ações pelas quais reconhecemos nossas transgressões, aquelas que cometemos através da fala têm lugar central: difamamos, acusamos falsamente, demos mau conselho, zombamos, provocamos, fizemos execração. [2]

Nas nossas vidas cotidianas, a capacidade das palavras construírem e destruírem é facilmente verificada. Não são raras as situações de crianças e jovens que são vítimas de bullying, especialmente as mais vulneráveis e que, por isso, precisam mais da nossa proteção. Em alguns desses casos, o desespero pelo assédio verbal faz com que as pessoas considerem terminar com suas vidas, pois passam a duvidar do seu próprio valor. No mundo virtual, as vítimas de cyberbullying não se limitam a crianças e jovens. Aproveitando do anonimato que o espaço virtual possibilita, há quem faça da agressividade verbal sua marca registrada. Basta entrar na seção de comentários de qualquer notícia política para testemunhar que o desejo destrutivo não é monopólio de qualquer ponto do espectro político: há pessoas de todas as posições dispostas a desumanizar quem pensa diferente, e somos todos culpados de legitimar comportamentos inaceitáveis de quem tem posições políticas parecidas com as nossas. Infelizmente, o mesmo acontece em muitos grupos no celular, mesmo quando conhecemos as pessoas envolvidas.

De outro lado, tampouco é raro encontrar exemplos de apoio e amor incondicional por meio das palavras nas postagens das redes sociais. Gente que, percebendo uma tragédia, se voluntaria para ajudar, traz palavras de carinho e de amparo, mesmo quando não conhecem pessoalmente a pessoa cuja dor tentam amenizar.

Na parashá desta semana, Balác, rei dos moabitas, contrata um feiticeiro, Bilam, para amaldiçoar os israelitas. Quando ele abre a boca para dizer sua maldição, no entanto, Deus troca as palavras e ele profere bênçãos sobre os filhos de Israel. Em uma das ocasiões em que isso acontece, ele profere a bênção com a qual iniciamos nossos serviços religiosos na CIP: Ma tovu Ohalêcha, Iaacov, michkenotêcha, Israel?, “Como são boas tuas tendas, Iaacóv, tuas moradas, Israel?”. [3]

O que precisamos fazer para que as palavras destrutivas que proferimos com frequência e sem pensar (maldições, críticas destrutivas, piadas inadequadas) possam também ser substituídas por bênçãos, comentários construtivos e frases de apoio a quem mais precisa? Na história de Bilam e Balác, a transição aconteceu na boca do feiticeiro, mas talvez precisemos abrir nossas mentes e nossos corações para garantir que essa mudança de conduta não seja, literalmente, “da boca para fora”. Quem sabe, ao mudar nossas palavras, acabemos por construir também uma nova realidade: um mundo mais acolhedor, mais plural, mais respeitoso das diferenças.

 

Shabat Shalom!

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Bava Metzia 58b

[2] Machzor Chatimá Tová, p. 39

[3] Núm. 24:5