Nesses momentos em que a nossa existência em segurança na terra de Israel se mostrou frágil desde 7 de outubro – uma permanência questionada pelo mundo e negada por nossos vizinhos – temos feito um esforço para manter nossa rotina milenar de leitura semanal da Torá, tentando encontrar nela algo que nos ilumine sobre essa dura e obscura realidade.
Chegamos ao texto de Chaiei Sará e reafirmamos nossa convicção de que aquela terra foi comprada pelo patriarca Avraham, em meio a um processo pacífico de negociação, mesmo que ele poderia tê-la tomado pela força. Afinal, ele era conhecido por seu poderio militar.
“Assim a terra de Efron em Machpelá, de frente para Mamrê – o campo, sua gruta e todas as árvores dentro de seus limites – passaram para Avraham por aquisição…” (Gen. 23:17-18)
Mas, mesmo na Torá, o nosso direito sobre a terra parece não ser tão permanente ou duradouro. Gerações depois dessa negociação feita por Avraham novamente estão vivendo na diáspora e, mantendo acesa a chama do retorno à terra dos nossos antepassados, Josué lidera os israelitas após o Êxodo em uma incursão à terra que já havia sido deles. Agora, não em um processo de negociação de compra-venda, mas de conquista militar, pois segundo a narrativa bíblica, as circunstâncias assim o demandavam.
Podemos encontrar diversas passagens que sustentam o nosso direito à terra de Israel. Mas esse argumento se mostra frágil, quando usamos os textos da nossa própria tradição, ignorando as tradições de outros povos com suas literaturas próprias.
Em palavras do rabino David H. Aaron, “ler qualquer parte da Torá como se estivesse isenta do escrutínio contra os entendimentos éticos e sociais de nosso próprio tempo é adotar um fundamentalismo bíblico que levará rapidamente ao desaparecimento do judaísmo.”
Partimos desta premissa para então voltar ao texto da Torá, e à necessidade que Avraham tem de sepultar sua amada esposa falecida. Trata-se de uma história de amor. A nossa relação com a terra de Israel começa com uma história de amor, que é transmitida de geração em geração, e ao longo dos milênios se adereça de esperança, para mais adiante tomar forma de um movimento de retorno denominado Sionismo.
Rabi Yudan bar Simon cita “três lugares que as nações do mundo não podem zombar de Israel e dizer: ‘Estas propriedades em suas mãos são roubadas’, e são elas: a Caverna de Machpelá, o Monte do Templo e o túmulo de Yossef” [Bereshit Rabá 79:7]. Todos esses 3 lugares foram comprados por nossos antepassados. Chama a atenção o fato de que dois deles tenham sido adquiridos com o propósito de sepultar os nossos mortos. Assim como uma semente, tanto Sarah quanto Yossef foram plantados naquela terra envolvidos em muito amor – lembremos que os ossos de Yossef foram trazidos do Egito para serem sepultados ali.
Nos despedimos dos nossos seres queridos semeando-os em terra – uma metáfora sensível que aprendi nos recentes acompanhamentos ao cemitério na condição de estudante de rabinato. A partir desse momento, nossa relação com aquele pedaço de chão já não será neutra.
E assim parece ser também com relação à terra de Israel. Há uma carga de afeto envolvida, mas só o amor pode não ser suficiente para sustentar o argumento do nosso direito à terra de Israel. Então uma vez mais, somos convidados a nos valermos do entendimento ético e social de nosso próprio tempo para usar argumentos que façam sentido para uma geração que nasce dentro da concepção filosófica dos direitos humanos.
Para além dos argumentos sobre o direito à terra, em meio à comunidade de nações, vivemos no tempo dos estados soberanos, e essa soberania precisa ser levada em conta. A Torá nos traz modelos de negociação em tempos de paz, e modelos de combate quando é tempo de guerra.
Que tanto nós, quanto os líderes de Medinat Israel possamos revisitar com olhos críticos os modelos trazidos na Torá e nos textos da nossa tradição, para decidir quando a negociação e quando a força militar é a maneira de garantir um Israel seguro, com todos os seus filhos e filhas de volta a casa.
#BringThemHome
#NeverAgainIsNow
Shabat Shalom!
Kelita Cohen
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