Gostaria de convidá-los para uma viagem. Vamos até uma aldeia, chegando lá andamos pelas ruas cumprimentando as pessoas até chegar a uma casa afastada. Batemos na porta e somos muito bem recebidos por um homem, muito simples e quase sem posses, mas extremamente feliz. Nos convida a entrar, tomar um café.

Um homem que tinha muito pouco, mas muito feliz com sua família, com sua pequena casa, com seu trabalho, com seus amigos, enfim, feliz com sua vida. 

Na mesma aldeia conhecemos outro homem, muito rico, que vivia em uma mansão, tinha empregados, havia viajado o mundo e tinha uma bela família, todos com muita saúde. Mas diferentemente do primeiro homem, era muito, muito infeliz. Não apreciava nada do que tinha e vivia desgostoso com a vida.

Esse homem muito rico ficou sabendo da existência daquele primeiro e de sua felicidade. Passou a observá-lo para tentar entender a origem de tanta alegria. Observou por semanas, meses, sem conseguir identificar nada que lhe chamasse atenção para justificar porque vivia sua vida tão feliz, sendo tão pobre. Durante todo esse tempo foi crescendo dentro dele uma inveja enorme. Como podia ser que aquele que não tem nada fosse tão feliz? Isso não podia ficar assim, ele, que tinha de tudo era infeliz, não conseguia aceitar a felicidade do outro.

Bolou um plano para mudar aquele simples homem, já que não pôde mudar a si mesmo. Deixou na porta da sua casa uma sacola cheia de moedas de ouro. Havia 99.999 moedas.

Quando amanheceu e o homem viu a sacola, logo a levou para dentro e agradecendo a Deus por terem pessoas tão generosas na aldeia começou a contar as moedas.

1, 2, 3, 4, 5,… 100,… 200,… 500,… 1000… 10.000… 50.000, 90.000… 99.998, 99.999…

– Puxa, onde está a moeda número 100.000? Deve ter caído em algum lugar quando abri a sacola.

Começou a procurar a moeda que faltava. Chamou sua família e todos começaram a procurar a moeda que faltava. Procuraram entre os poucos móveis da casa. Buscaram também na entrada da casa. O simples homem nunca mais deixou de procurar a moeda. Tornou-se um homem amargo e inconsolável.

Pirkei Avot diz que o rico é aquele que é feliz com o que tem. Segundo essa visão, nosso pobre homem seria extremamente rico até o momento de ser financeiramente rico. Para uma vida naquela aldeia aquelas moedas de ouro seriam o suficiente para que não tivesse que trabalhar nunca mais, e ainda deixar uma boa herança para seus filhos. Mas nesse momento ele se vê transformado. Faltava uma.

Será que isso quer dizer que devemos viver acomodados? Felizes com o que temos? Sem buscar alcançar objetivos maiores em nossas vidas? Sem nos esforçarmos?

Estamos começando o ano. Olhando para todas as possibilidades que temos perante nós. Será que devemos simplesmente deixar todas elas passarem reto frente aos nossos olhos, já que devemos ser felizes com o que temos? Ou será que existem algumas buscas e esforços que devemos fazer para termos algo ainda melhor para nós, nossa família, nosso planeta?

No mesmo Pirkei Avot, compêndio de máximas rabínicas A Ética dos Pais,  Rabi Tarfon nos diz que não podemos abandonar nossas responsabilidades de fazer deste mundo um lugar melhor para todos. Será que isso quer dizer que somente deveríamos buscar coisas que sejam boas para o coletivo, e se é algo pessoal não?

A tradição judaica não é asceta, na qual o mundo físico é irrelevante, nem uma tradição que ignora os prazeres pessoais. Maimônides é um grande defensor do nosso aprimoramento intelectual. Segundo ele, somente assim poderemos chegar mais perto de compreender o que é Deus, o que Ele quer de nós e como devemos viver nossa vida. Esse aprimoramento é extremamente pessoal e individual. Mas além do racional, Rambam também acredita que devemos atender aos nossos desejos físicos e sensitivos, através do esporte, arte, cultura, para que nosso intelecto não fique preso a esses desejos. 

Estamos começando um novo ano. Um ano em que muitas coisas serão novas e talvez ainda não possamos prevê-las. Porém muitas serão renovadas, outras serão mantidas e outras ainda serão deixadas de lado. Estamos no momento ideal para refletirmos quais entrarão em cada uma dessas categorias. 

Para saber se algo deveria ser renovado, apenas mantido ou abandonado, devemos colocá-lo em perspectiva com toda a nossa vida, nossas ideias e ideais. Além de entender como tudo isso se insere em nossa comunidade e no mundo.

Muitas vezes seguimos em busca de algo de forma automática e sem realmente pensar. Ficamos tão acostumados a simplesmente ir atrás de algo que depois de um tempo não sabemos nem o porquê. Como uma moeda que achamos que está perdida, mas que nunca existiu… Assim como esse homem que tinha sido simples e feliz, nós também ficamos presos a buscas sem sentido.

Até que ponto devemos buscar prazer, melhorar a nós mesmos e até que ponto devemos nos acomodar e sermos simplesmente felizes com o que temos?

O critério talvez seja que tipo de energia colocamos nas nossas buscas. O que deixamos de lado ou temos que sacrificar para chegar ao nosso objetivo. Ou ainda, qual a razão para estarmos buscando algo. 

Talvez o Eizehu Ashir, Hasameach Bechelko, quem é rico, aquele que é feliz com o que tem, de Pirkei Avot, não nos diz para sermos acomodados, e sim para conhecermos a fundo o que temos. Não só no mundo material, mas também no mundo racional, intelectual e emocional.

Tudo o que nós somos faz parte do que temos, nossas vontades e desejos. A busca sem sentido da moedinha que faltava era porque era uma busca de algo que não lhe pertencia. Algo que ele não trabalhou para conseguir, e na realidade nem queria.

Deus nos abre a porta para um novo ano. Um ano em que podemos escolher novamente o que queremos para nós, para aqueles que nos rodeiam e para o mundo. Escolher e trabalhar para que cada uma de nossas escolhas aconteçam. 

Deus nos abre a porta também para colocarmos para fora tudo aquilo que não nos pertence realmente. Tudo o que fazemos mecanicamente, que fazemos porque alguém nos colocou essa vontade.

Que possamos aprender a selecionar o que faz parte de nós e sermos felizes com isso, sem querer importar vontades e desejos alheios.

Que possamos fazer buscas com sentido para nos tornamos pessoas melhores e fazer desse mundo um lugar melhor.

Que possamos nos alegrar com o que temos e com o que realmente queremos ter. Que possamos ser felizes com o que temos e queremos ter!

Shaná Tová

rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik