É interessante ver como, às vezes, conseguimos concordar em relação a alguns grandes ideais (ou algumas palavras vagas), apesar de apresentarmos profundas discordâncias em relação aos detalhes desses conceitos (ou, por outro lado, nunca termos parado para pensar que detalhes seriam esses). Nessas situações, há um incentivo perverso a nos mantermos em lugares comuns sobre o que concordamos, mas sem detalharmos o que eles significam para não “criar discórdia”.
Há alguns anos, por exemplo, fui convidado a participar de um evento inter-religioso que seria centrado ao redor de três palavras: “vida”, “família” e “paz”. À primeira vista parecia uma excelente ideia, quem poderia ser contra esses três conceitos?! Quando começamos a conversar mais sobre cada um deles, no entanto, percebi que meu entendimento era diametralmente oposto àquele das pessoas que estavam me convidando. Mesmo ideias aparentemente bem definidas, como vida, família e paz, podem esconder interpretações subjetivas e nada consensuais. Delicadamente declinei o convite, mas nunca esqueci daquela situação.
“Vida”, “família” e “paz” são valores fundamentais da tradição judaica, quando eles têm significados específicos, não em qualquer definição possível. Da forma análoga, a questão da “justiça” é também valor central e que, por isso, não fica restrito a afirmações genéricas do tipo “você deve buscar a mais absoluta forma de justiça” [1], mas estabelecendo abordagens concretas com relação ao estabelecimento de um sistema judicial honesto, que não favoreça nem os poderosos nem os oprimidos [2].
A discussão da responsabilidade social judaica, seja com relação ao meio-ambiente ou com outras pessoas, também pode levar a falsos consensos, a menos que esteja baseada em políticas concretas. Na parashá desta semana (Behar), encontramos mecanismos concretos para tornar essas responsabilidades efetivas. A Torá não se limita a compromissos genéricos com a justiça ambiental: estabelece que a terra deve descansar completamente a cada sete anos, permitindo que se regenere antes de voltar a produzir. Da mesma forma, nossa parashá vai além do desejo de que uma sociedade justa e igualitária se estabelecesse entre os israelitas: ela cria a regra de que o acúmulo de terras seria cancelado a cada cinquenta anos, retornando à distribuição original, como definida quando o povo entrou na terra de Israel pela primeira vez.
Quantos de nós podemos dizer que agimos de forma semelhante à prescrita pela Torá na passagem dessa semana? Me parece que muitas vezes afirmamos nossa simpatia por conceitos abstratos exatamente porque sabemos que eles não terão qualquer impacto na vida que levamos, que não nos forçarão a mudar em nada o que já fazemos. Por exemplo, manifestamos nossa preocupação com o meio ambiente ao mesmo tempo em que não mudamos nossos hábitos de consumo; expressamos o sonho de uma sociedade menos injusta, mas não nos mostramos dispostos a abrir mão dos privilégios de que desfrutamos. E, assim, em muitas outras situações nos manifestamos comprometidos com algumas causas sem fazermos qualquer esforço para avançá-las de fato.
Que a parashá desta semana nos ajude a alinhar nossas ações, nossos anseios e nossas palavras, dando concretude aos valores judaicos que dizemos defender.
Shabat Shalom,
Rabino Rogério Cukierman
[1] Deut. 16:20
[2[ Por ex.: Deut. 16:18-19; Ex. 23:1-3