A tradição requer transmissão ou transformação? Prega conservadorismo ou reforma?

Longe dos movimentos atuais e dos termos que os identificam, nossa pergunta refere-se a se a Torá prega rigidez e estática ou diálogo com a realidade e sensibilidade responsável para com suas mudanças.

Enquanto algumas ortodoxias tentam nos dizer que a Torá fala apenas uma mensagem clara, imutável e eterna, que não sugere interpretações diversas, que não dialoga com a realidade e portanto não muda nunca, a própria parashá da semana é uma prova contundente do contrário. Nela a lei é mudada pelo próprio Deus!

Cinco moças, filhas de um dos homens que saíram da escravidão egípcia e morreram no deserto, pediram para herdar a terra do pai. Segundo a lei da época, apenas os filhos homens herdavam. Tzlofchad não tinha filhos homens e portanto sua terra passaria a bem público, e suas jovens e solteiras filhas ficariam condenadas à pobreza extrema até encontrarem maridos. Por isso, reclamam para Moshe que a lei seja mudada, para que elas possam herdar a terra de seu pai mesmo sendo mulheres e solteiras. Moshe, segundo o relato, pergunta a Deus o que fazer e Deus responde que elas estão certas, e manda mudar a lei. A partir desta parashá, quando um homem morrer sem filhos homens as filhas mulheres herdarão as terras e os irmãos homens do defunto as receberiam só caso elas estiverem casadas.

Também no começo da parashá Deus muda de atitude. Até agora nas três parashiot anteriores os rebeldes eram castigados e mortos enquanto que agora tudo é pacto de paz. Quando Deus vê um homem tomar a própria lei de Deus nas suas mãos e matar pecadores como Deus fez nas parashiot passadas, muda para sempre de atitude e rega paz, compreensão e perdão.

Também após o dilúvio o próprio Deus promete que nunca mais fará dilúvios e destruições totais.

A grande pergunta é por que a Torá conta desse modo essas histórias, ao invés de estabelecer a priori a modalidade final. No caso específico da parashá: por que contar que primeiro existia uma outra lei, que vieram pessoas do povo, mulheres simples, e sua crítica desafiou o próprio Moshe ao ponto de não saber como agir e precisar da consulta direta com Deus para resolver. Por que dizer que o próprio Deus mudou uma lei em função de uma reclamação humana, de pessoas simples?! 

No final do episódio e antes de serem estabelecidos os rituais das festas, acontece outra mudança radical: Moshe é quem se dirige a Deus (ao invés do contrário, que acompanha o texto todo da Torá — Vaiedaber Moshe el Ad-nai Lemor, Números 27:15) e manda nomear um sucessor. Deus aceita o pedido e indica Josué, e Moshe é ordenado a transferir sua autoridade a um novo líder, que terá sua própria forma de conduzir, de transmitir. Le dor vador, com a sensibilidade própria de cada geração. Abertos às suas contribuições. 

Talvez a Torá faça questão de ensinar que o próprio Deus precisa de diálogo com a realidade, de sensibilidade para compreender a unicidade de cada pessoa e de cada caso. Se o próprio Deus manda mudar para garantir justiça, ética e responsabilidade, certamente nós, os humanos, precisamos também saber o que, como, quando e quanto mudar a fim de conservar os valores mais sublimes.

 

Shabat shalom,

Rabino Ruben Sternschein