O nome da parashá desta semana, “Acharei mot”, faz menção à morte dos filhos de Aharon, que fora descrita há algumas semanas, na parashat Shemini.

וַיַּקְרִיבוּ לִפְנֵי יְהֹוָה אֵשׁ זָרָה

… וַיָּמֻתוּ

va’iakrivu lifnei Adonai esh zará… va’iamútu

“…e ofereceram diante do Eterno fogo estranho… e morreram”

[Levíticos 10:1-2]

Mas aqui, o texto bíblico traz uma nova justificativa para a morte de Nadav e Avihu: 

בְּקׇרְבָתָם לִפְנֵי־יְהֹוָה וַיָּמֻתוּ

be’karvatam lifnei Adonai va’iamútu

“…que morreram por se aproximarem demais da presença do Eterno”

[Levíticos 16:1]

Por que os filhos de Aharón morreram? Por se aproximar da presença divina ou por realizar uma oferta indevida? As duas narrativas parecem justificar de formas diferentes o incidente. E em qualquer dos casos, nós, como leitores, podemos nos ver implicados em ambas e a nos perguntarmos qual é a distância segura da divindade, ou mesmo, quais são as ações que a presença divina espera de nós.

As palavras usadas nas duas explicações bíblicas para as referidas mortes procedem da mesma raiz. O vocábulo karov (heb.: próximo, perto) compartilha com korbán (heb.: oferta, sacrifício) as mesmas 3 letras קרב. Chama a atenção dos estudiosos bíblicos a introdução das duas palavras na Torá: nos dois primeiros livros do Pentateuco, essa raiz será usada unicamente no sentido de proximidade (hikriv) (ex.: Bereshit 12:11 e Shemot 14:10). Todos os sacrifícios descritos nesses livros utilizaram outras palavras, como minchá מנחה (Bereshit 4:3), olá עולה (Bereshit 8:20) e zêvach זבח (Bereshit 46:1). O uso da palavra korbán קָרְבָּן tem início em Vaicrá, o livro dos Levíticos, que lemos nesta temporada do ciclo anual.

As duas perspectivas aparecem de alguma maneira em uma parábola trazida por Rambam nos tempos medievais, em usa obra filosófica denominada, na tradução ao português, Guia dos Perplexos

…Um rei está em seu palácio, e seus súditos – uma parte está na cidade e uma parte está fora dela. Entre os que estão dentro da cidade, há aqueles que viram as costas ao palácio do rei e direcionam suas faces a outro caminho, e há aqueles que se direcionam ao palácio do rei, dirigem-se a ele e querem entrar nele e se apresentar perante o rei, porém, até aquele momento, nunca viram o muro do palácio.

Entre os que se direcionam ao palácio do rei há quem chegou e dá voltas ao redor à procura do portão de entrada. Entre esses, há quem entrou pelo portão e anda pelos corredores. Entre esses, há quem chegou ao pátio do palácio e se encontra no mesmo lugar que o rei – na casa do rei – porém, apesar de estar dentro da casa, ele não vê o rei nem fala com ele. Mas, após estar na casa do rei, existe a necessidade de outro esforço adicional e então poderá se apresentar diante do rei e o verá à distância ou de perto, ou ouvirá a palavra do rei ou falará com ele.

Maimônides divide as pessoas nessa parábola por sua relação de distanciamento ou proximidade com a divindade. No primeiro grupo, estão aqueles que sequer se ocupam da espiritualidade (estes estão fora da cidade); logo, há aqueles que se dedicam à religião, mas se levam por caminhos que os afastam de Deus (estes estão dentro da cidade, de costas à casa do rei); o seguinte grupo está representado por pessoas observantes da Torá, mas ignorantes dela, dedicando-se apenas às práticas religiosas (estes são os que estão na cidade, voltados em direção à casa do rei, mas nunca a viram); há ainda os estudiosos, que se dedicam a discutir as leis e as práticas religiosas, sem se aprofundar nos fundamentos (estes são os que chegaram à casa e circulam em torno dela); e finalmente, o grupo mais próximo, que adentrou à câmara íntima da presença divina, formado pelos que estudam, se aprofundam, compreendem e aprendem questões existenciais e essenciais da vida (estes estão com o rei no interior da casa).

Dessa parábola talvez possamos extrair alguma luz sobre os potenciais motivos da morte dos filhos de Aharón. Rambam, um filósofo racionalista, nos leva a pensar no korbán que era oferecido no Templo como uma forma de se achegar a Deus, mas, se feito apenas como uma prática ritual, desprovida de sentido, poderia tornar vazia a existência daquele que assim procede. Mas ainda assim, o segundo motivo da morte, por se aproximar, pode não estar ainda compreensível.

Tentando expandir um pouco mais a interpretação, essa mesma combinação sequencial de letras קרב também é alusiva a outras duas acepções que podem nos ser úteis nessa tentativa de entender a linguagem bíblica a partir do pshat – método interpretativo judaico que deriva da palavra, da literalidade. Assim, poderia ter alguma correlação com o nosso tema, as palavras krav (heb.: batalha, luta) e kravim (heb.: intestinos, interior)?

Os textos que explicam a morte dos dois jovens, quer por oferecer fogo estranho, quer por se aproximar demais, podem estar relacionados ao posicionamento ou à intenção com a qual fazemos o que fazemos. Aproximar-se da presença divina com armadura, como estando pronto para uma batalha, nos torna impermeáveis ao divino. Ao mesmo tempo, uma aproximação visceral, que faz com que estejamos “com o rei na barriga”, nos leva a nos ver como melhores do que os demais, colocando-nos no próprio lugar de Deus.

Que possamos nos despir das armaduras que impedem o contato com a fonte da vida, ao mesmo tempo em que possamos nos reconhecer, em diálogo com a divindade que habita em nós e nos demais.

 

Shabat Shalom!

Rabina Kelita Cohen

 

  1.  Bazak, Amnon. Nekudat Peticha, p. 219.

  2.  Guia dos Perplexos 3:51