“O mais negativo da religião é que tira toda a responsabilidade ética do homem. Qualquer ato do mal pode ser justificado dizendo: se Deus é Todo-Poderoso e não o impediu, significa que o que eu fiz não estava errado. Se Deus quisesse que eu não mentisse ou não roubasse ou não matasse, Ele o teria impedido”. Assim, o grande filósofo da ética, Immanuel Kant, levantou uma das críticas mais fortes a toda religião. Segundo ele, a religião não apenas tira a responsabilidade ética da pessoa diante dela mesma, mas também diante do próximo por ele agredido. Kant insiste em que quando uma pessoa religiosa já sente alguma culpa ou responsabilidade, ela surge apenas diante de Deus e não diante da pessoa agredida por ele. O perdão é solicitado de Deus e não do agredido. Deus é quem perdoará. Muitas vezes, inclusive, o perdão é pedido apenas por medo das consequências e, não por verdadeira responsabilidade ética.
A parashá da semana, escrita pelo menos uns três mil anos antes de Kant nascer, desmonta maravilhosamente essa tese.
O texto começa dizendo “kedoshim tihiu ki kadosh ani”, “santos sereis, pois santo sou Eu vosso Deus”. Ou seja, a instância divina não substitui a humana. Não é suficiente que Deus seja santo. Não estamos no mundo apenas para presenciar o que Deus é ou o que Deus faz. Não é Deus que faz tudo ou cuida de tudo e a quem devemos atribuir tudo passiva e irresponsavelmente. Pelo contrário. A instância divina é um modelo, um exemplo para imitarmos, um ideal para nós atingirmos, um desafio constante de aperfeiçoamento. Deus é santo e, portanto, nós devemos tentar sê-lo.
O midrash e depois Maimônides explicaram, séculos depois, que tudo o que atribuímos a Deus nos compromete e encoraja. Se Ele é bondoso, implica que você deve ser bondoso. Se Ele perdoa, indica que você tem que saber perdoar. Se Ele é sábio, significa que você precisa se esforçar por saber.
Na nossa era, o rabino Mordechai Kaplan estabeleceu que Deus é a totalidade dos ideais humanos. Seu Deus é sua idéia da justiça, do amor, da verdade, do bem. Por isso, escreveu: “Não é tão importante saber o que Deus pede de nós ou pensa de nós e sim o que nós pensamos dele. O que Deus pensa ou pede será sempre uma especulação, pois não podemos conhecer Deus perfeitamente. O que nós pensamos de Deus é o que dizemos com respeito a tudo. O que acreditamos como valioso, verdadeiro e bom. O que Deus pensa é mistério. O que nós pensamos dele diz respeito a nós mesmos.”
A ideia de Deus não tira responsabilidades. Pelo contrário: as agrega, pois expressa nossas maiores aspirações pessoais e humanas que, colocadas em Deus, nos instam sempre a alcançá-las.
A parashá segue com uma série de mandamentos éticos práticos que desafiam a consciência. Cada um deles acaba com a assinatura: Ani Ad-nai, ou seja, Eu sou Deus. O comentarista Rashi explicou que essa assinatura indica que Deus se coloca na intimidade da consciência, lá onde só cabe a verdade, e não há espaço para o autoengano. Segundo a parashá, Deus é a instância que nos leva justamente a assumir as maiores responsabilidades diante do tribunal mais exigente de todos: nossa intimidade, nossa verdade interior.
Shabat shalom,
Rabino Dr Ruben Sternschein