A Torá descreve algumas datas como sendo ocasiões sagradas, cuja prescrição se relaciona com a sua celebração no tempo determinado. São elas as três festas da peregrinação (Pêssach, Shavuót e Sucót), além de Rosh Hashaná e Iom Kipur. Seguindo cronologicamente, logo após Shavuót, as próximas datas solenes classificadas nessa categoria pela Torá serão os Iamim Noraim. 

Entre Pêssach e Shavuót, nos preparamos para receber a Torá. É relativamente baixo o nível de exigência atribuído a um povo recém-saído da escravidão e que dá seus primeiros passos como seres livres. A Parashat Nassô, no entanto, lida usualmente no Shabat posterior a Shavuot, parece se dedicar a nos preparar para um outro estágio na história da civilização, já inseridos no pacto social da Torá, e nela somos introduzidos a um juízo baseado em princípios éticos.  

O ensinamento aos israelitas logo ao começo da parashá é igualmente abrangente a homens e mulheres, e diz respeito às ações individuais praticadas contra outro ser humano que, por sua vez, afeta a relação de confiança com o divino: 

“Quando um homem ou uma mulher cometerem individualmente algo errado em relação a outro ser humano, quebrando assim a confiança do Eterno…”  [Num. 5:6]

Partindo da má conduta, o texto da Torá segue enumerando os passos seguintes para uma reparação justa [v. 6-8]:

  1. וְאָשְׁמָה הַנֶּפֶשׁ הַהִוא 

Reconhecer sua culpa;

  1. וְהִתְוַדּוּ אֶת־חַטָּאתָם אֲשֶׁר עָשׂוּ

Confessar o erro que cometeu;

  1. וְהֵשִׁיב אֶת־אֲשָׁמוֹ בְּרֹאשׁוֹ

Restituir a montante proporcional ao dano;

  1. וַחֲמִישִׁתוֹ יֹסֵף עָלָיו

Adicionar uma 5ª parte sobre o valor principal;

  1. וְנָתַן לַאֲשֶׁר אָשַׁם לוֹ

Entregar a quem sofreu o dano;

  1. מִלְּבַד אֵיל הַכִּפֻּרִים אֲשֶׁר יְכַפֶּר־בּוֹ עָלָיו

Fazer a expiação em seu favor.

Chama a atenção nessa estrutura reparatória e conciliadora das relações entre humanos e entre humanos e Deus que há 3 passos prévios à reparação propriamente dita. O primeiro deles é a necessidade de um reconhecimento da culpa (ashmá), e não da imputação da culpa por um terceiro. O segundo é o elemento adicional da confissão (hitvadú), que vem junto com o reconhecimento da má conduta e da responsabilização por seus atos. Finalmente, nessa tríade, está a teshuvá (heshiv), expressada no que é retornado ou restituído ao outro. 

Para além da materialidade, uma vez que um dano nem sempre é físico, mas que pode acontecer em palavras ou mesmo com silêncios, outro aspecto que chama a atenção nesse manual da teshuvá é que após esse movimento interior de reconhecimento da culpa, confissão e arrependimento, os próximos passos estão dirigidos ao outro, e só então, é possível uma reconciliação com Deus.

A Torá não compartimentaliza: nas nossas faltas cometidas contra outra pessoa, também há uma quebra no contrato com a divindade que habita em nós. Mas a tradição rabínica agrava o que é cometido contra outro ser humano, por sobre as ofensas cometidas contra o próprio Deus. Em um midrash nossos sábios ensinaram: “Ele foi mais rigoroso em relação aos [pecados contra] a pessoa comum do que em relação aos [pecados contra] o Altíssimo”. 

Daqui a alguns meses chegará Elul, quando faremos essa jornada sistemática de retorno a nós mesmos, de teshuvá, para avançar em direção à reconciliação com nossos semelhantes, e assim, quando chegarmos em Iom Kipur, possamos ser encontrados reconciliados com Deus.

Mas nesta parashá, aprendemos que essa prática pode ser um exercício diário, e não anual. Que possamos melhor a cada dia a nossa humanidade, de tal maneira que a confiança que a fonte da vida deposita em nós não seja defraudada.

 

Shabat Shalom!

Rabina Kelita Cohen

 

  1.  Bamidbar Rabá 8:4