Quando o Deus disse a Moshé: Diga aos israelitas – ‘Quando atravessarem o Rio Jordão para a terra prometida, designem algumas cidades para serem suas cidades de refúgio, para onde uma pessoa que matou alguém acidentalmente possa fugir. Elas serão lugares de refúgio do vingador, para que uma pessoa acusada de assassinato não morra antes de ser julgada pela assembleia’ (Bamidbar 35:9-12)
O assunto do capítulo 35 do livro Bamidbar é a Ir Miklat, ou Cidade de Refúgio, para onde as pessoas acusadas de matar podiam fugir; protegendo o assassino de familiares da vítima, para que não possam fazer justiça com as próprias mãos. Justamente o problema que encontramos na parashá passada, Pinchás.
Se fossem consideradas culpadas de assassinato deliberado e premeditado, eram então punidas de acordo; se fosse algum tipo de acidente, o assassino tinha proteção garantida enquanto permanecesse na Ir Miklat, a cidade de refúgio.
A mensagem desse modelo social é clara: o processo judicial é de extrema importância e devemos tratá-lo como algo sagrado, algo a ser defendido e protegido. A criação das Arei Miklat, as Cidade de Refúgio, nos ensina que todos, até mesmo aqueles que mataram outra pessoa, tem o direito de proteção durante o processo judicial.
É evidente que o processo judicial estabelecido na Torá tem inúmeras complicações. Especialistas no tema debatem até se esse sistema foi aplicado em algum momento da história ou não. O judaísmo que vivemos nos últimos 2000 anos é o judaísmo rabínico, e não o da religião bíblica. Isso quer dizer que nossa tradição se baseia nos tempos bíblicos e seus ensinamentos, porém há um filtro da literatura rabínica que busca adaptar essa sabedoria ancestral a uma nova realidade na qual se encontram.
Como então funciona o sistema judicial rabínico?
Dra. Kristine Henriksen Garroway, professora de Bíblia Hebraica no Hebrew Union College em Los Angeles escreve no livro “The Social Justice Torah Commentary”:
“Os rabinos, portanto, criaram um sistema judicial elaborado e rigoroso para que os erros judiciais fossem tão raros quanto possível. Emulando os padrões exigentes do Juiz Divino, que, por exemplo, alertou as pessoas de Sodoma e Gomorra muitas vezes antes de condená-los e até mesmo enviou Avraham para defender sua causa, os rabinos se esforçaram para estabelecer um sistema judicial no qual os inocentes seriam absolvidos e apenas os verdadeiramente culpados seriam condenados. Tal cautela os levou, ocasionalmente, a limitar significativamente o escopo de uma lei bíblica. Considere o caso do filho rebelde e desafiador (Devarim 21:18-21) que, de acordo com o texto, deve ser executado. Os rabinos, aparentemente desconfortáveis com a possibilidade de que um filho que não fosse verdadeiramente rebelde pudesse ser morto por agir com base em uma pequena angústia adolescente, adicionaram tantas qualificações à definição de uma criança rebelde que se tornou necessário admitir que tal criança jamais poderia existir.”
Assim como o sistema judicial bíblico não teve uma aplicabilidade significativa em seu tempo, o sistema desenvolvido pelos rabinos também foi limitado a uma esfera pequena, já que nunca houve um estado soberano regido pelas leis rabínicas. Mesmo em micro comunidades da idade antiga e da idade média que eram regidas pela lei talmúdica, os rabinos tinham dificuldade em aplicar um sistema complexo quando nem todos aceitavam sua legitimidade e eram parte de um governo superior de outra tradição religiosa, no qual os judeus tinham a permissão de viver e se auto legislar apenas até certo ponto.
A reflexão ainda assim é válida para os nossos dias. Como podemos aprender algo da nossa literatura quando os tempos mudaram? Como fazemos para aplicar leis antiquadas em uma nova realidade? Qual o papel da lei rabínica quando nós judeus vivemos sob um regime civil que não se baseia nas leis do nosso povo?
A professora Garroway nos ensina que mesmo diante de uma nova realidade temos uma responsabilidade para com a sociedade civil, como cidadãos plenos dentro de um Estado Democrático de Direito: “Vereditos errôneos mancham nosso caráter nacional não menos do que antigos erros judiciais em Israel mancharam o santuário. Devemos exigir, com nossas vozes e nossos votos, reformas no sistema judicial que garantam a cada réu representação competente, um julgamento justo e sentença razoável. Assim, também, podemos escolher apoiar organizações que defendem pessoas que foram condenadas injustamente. Nenhum sistema de justiça pode erradicar erros completamente, mas a repulsa de Deus pela injustiça nos convoca a exigir um sistema no qual os erros sejam raros e reversíveis.”
Defendemos o Estado Laico como modelo no qual nenhuma religião se impõe sobre outra religião nem suas práticas religiosas aos cidadãos, ao mesmo tempo que a liberdade religiosa é garantida para todas as pessoas. Isso não impede que atuemos como cidadãos, dentro do modelo democrático de governança política, a partir de uma lente judaica. Carregamos conosco nossos valores milenares de justiça e paz, guiando-nos em todas nossas decisões cívicas, sociais e políticas, exercendo nossos direitos e deveres como cidadãos.
Nosso desafio histórico continua sendo o de olhar para nossa tradição com carinho e profundidade, buscando entender dentro de todo seu potencial, as limitações e possibilidades de se aprender valores e práticas que nos orientem em nossas decisões cotidianas.
Shabat Shalom,
Rav Natan Freller