
Embora vejamos ditadores, tiranos, presidentes e outros líderes democraticamente eleitos corruptos e manipuladores do sistema para ganhar benefícios e driblar a lei, a Torá mandava,há mais de 3500 anos, na parashá da semana, cuidar de todos os abusos dos governantes. Sejam eles reis, juízes, profetas, sacerdotes, levitas ou militares.
Julgar com justiça, por meios justos, não aceitar subornos, não reconhecer rostos. Justiça cega que não permita que ninguém fique acima da lei ou à margem dela.
Entretanto, surgem algumas perguntas: se a justiça for cega como exercerá a compaixão? E como captar a diferença entre as motivações, forças e fraquezas de dois réus que fizeram o mesmo ato? E se um está realmente arrependido ainda antes de ser condenado e outro mesmo após cumprir a condenação já está planejando a próxima transgressão? E se um cresceu entre bandidos e outro aceitou fazer uma única exceção com muita culpa por falta de recursos para alimentar um bebê?
Quem escreveu essa lei para que confiemos que deve estar acima de tudo e de todos? Seria tão perfeito assim?
A parashá alerta que em cada geração haveria autoridades que deveriam ser consultadas, e não poderia se tratar de um texto único e fechado.
Além disso, no começo do livro de Devarim a Torá ensina que a justiça verdadeira, justa e total é apenas de Deus. Poderíamos entender dessa sentença que só Deus conhece as nuances de cada caso até o mínimo detalhe para poder estabelecer exatamente o nível de responsabilidade de cada pessoa em cada situação. Também Deus seria o melhor educador que poderia ajudar todo réu a se melhorar, na sua necessidade exata.
E por que então a parashá começaria mandando a nomeação de juízes e policiais humanos? Por que reafirma a possibilidade de instaurar reis, e outros líderes humanos?
Duas respostas acredito convincentes.
1) Baseado no filósofo Levinas, porque a intervenção divina pode demorar anos e até gerações, e enquanto isso as dinâmicas humanas precisam se resolver. Se duas pessoas brigam, mesmo que Deus faça justiça e ensine ao longo das vidas deles e/ou dos seus descendentes eles precisarão se acertar de algum modo nos dias seguintes. Mesmo que com uma justiça parcial e com um aprendizado menor.
2) Se apenas Deus avaliar, julgar e educar, ninguém assumirá qualquer responsabilidade. Nem pelas próprias ações nem pelas alheias. A humanidade teria menos propósito e menos liberdade.
E por fim, como operariam, essa justiça e essa educação humanas, uma vez que conhecem suas limitações e confiam na intervenção divina corretiva? Não adotariam de todo modo uma atitude passiva, ou medíocre contando com que Deus consertará afinal?
O próprio Tanach (Bíblia hebraica) resolve esse último dilema nas palavras do rei Yehoshafat aos juízes de sua época: “ prestem atenção ao que fazem pois não frente aos humanos julgam vocês e sim frente a Deus…” Ou seja, ainda que a justiça e a educação sejam humanas e caiba acreditar e confiar na intervenção divina posterior, deve o humano aspirar a emular a justiça a educação divinas, mesmo que sejam inalcançáveis. A mera tentativa de alcançar o padrão divino trará o melhor do humano.
Shabat Shalom!
Rabino Dr. Ruben Sternschein