
Há mais de uma tradução para a palavra Bereshit, e cada uma delas orienta a uma visão de mundo. No começo… Em princípio… Segundo começo (ou recomeço).
Tudo isto porque a letra “beit” como prefixo de uma palavra pode ser interpretada como preposição, conjunção ou numeral.
De fato, a narrativa do Gênesis fala de um começo que não começa no princípio. Ainda antes de criar a luz no primeiro dia, já havia caos (tohu va’vohu), escuridão (chóshech), abismo (tehóm) e águas (máim).
Ramban (Nachmânides), seguindo o entendimento de Filón de Alexandria, defende a versão de “Be + Reshit” (com o princípio), considerando o prefixo “bet” uma conjunção. Ele apreende do livro de Provérbios (4:7) que o princípio é a sabedoria e, com isto, entende que a Sabedoria com a qual Deus criou o mundo é o seu princípio gerador.
רֵאשִׁ֣ית חׇ֭כְמָה
O princípio é a sabedoria…
Provérbios 4:7
Uma descrição paralela à narrativa de Gênesis 1 está presente em Provérbios 8, cujo narrador é a Sabedoria. Ela, a Sabedoria, fala em primeira pessoa, sugerindo que sua origem antecede à criação do mundo.
יְהֹוָה קָנָנִי רֵאשִׁית דַּרְכּוֹ
Deus me* criou como o primeiro dos seus atos (*diz a Sabedoria).
Provérbios 8:22
Uma segunda interpretação aparece na tradução bíblica ao espanhol feita por Daniel Colodenco, que propõe a inserção de uma partícula temporal: “Quando Deus começou a criar céus e terra…”. Neste caso, a descrição não seria da criação em si mesma, mas da criação da ordem a partir do caos pré-existente.
Essa interpretação é coerente com a ideia de uma criação que não é a primeira, como descrita em Kohélet Rabá 3:11. Esse midrash insinua que houve várias criações que antecederam à do relato bíblico. “Rabi Abahu disse: …Deus criou mundos e os destruiu, criou mundos e os destruiu, até que criou este [mundo], e disse: ‘Este Me agrada e aqueles não Me agradam’.”
Particularmente, eu gostaria de propor um entendimento mais simples e recorrente do relato bíblico, que em certa medida integra os conceitos apresentados até aqui.
Nesta semana, concluímos a leitura do livro de Devarim, o último da Torá, e reiniciamos imediatamente a leitura do Bereshit. Dessa maneira, a leitura do recomeço parte da criação divina de céus e terra. Nesse jogo de palavras, a Torá continua viva e vibrante, permitindo que novos mundos sejam criados a partir das novas leituras às quais nos abrimos.
E assim como o relato da criação não parte do nada, também nós, ao recriarmos o mundo, o fazemos a partir das nossas vivências prévias, nossa história e todo o entendimento e conhecimento que a Sabedoria nos permite apreender.
Bereshit, como porta de entrada ao novo ciclo, nos ensina que recomeços verdadeiros podem emergir do caos transformado pela sabedoria. Nesse novo capítulo, após dois anos caóticos desde o 7 de outubro de 2023, abraçamos nossas histórias, curamos nossas feridas aprendendo com o passado, e nos preparamos para reconstruir nosso mundo.
Shabat Shalom
Rabina Kelita Cohen.