Nessa semana lemos a parashá Nôaḥ, onde encontramos a história do terrível dilúvio, de sua famosa arca, além da curiosa história da Torre de Babel (Migdál Bavél).
Sobre Nôaḥ diz a Torá que era “uma pessoa justa e íntegra na sua geração” (Gn 6:9). Alguns comentaristas apontaram que ele só pôde ser considerado justo e íntegro porque estava no meio de uma sociedade de valores completamente degradados, onde a vida humana não valia mais nada, onde o ódio e violência gratuitos eram corriqueiros e onde o assassinato havia se tornado algo trivial.
Para esses comentaristas, Nôaḥ não seria o melhor dos seres humanos mas, em comparação com o tipo que havia se tornado comum, ele era justo e íntegro. No entanto, se tivesse nascido na época de Avraham Avínu – diz o midrash – ou de Adám haRishón, ele nem teria sido percebido.
Outros comentaristas disseram exatamente o oposto, explicando que o texto enfatiza “na sua geração” justamente para mostrar o quão justo e íntegro ele era, ousando ir contra tudo o que era tido como normal, recusando-se em se tornar como os demais. Se alguém com tal caráter conseguia se manter justo e íntegro naquela geração, então certamente seria justo e íntegro em toda e qualquer geração.
Sobre o dilúvio (mabúl), em um primeiro momento se trata de uma destruição total de tudo o que havia sido criado. A própria palavra mabúl se refere em hebraico antigo ao “teto do mundo” e, quando o texto diz que o mabúl cairá sobre a terra, não se está falando de chuva, mas sim, da demolição de toda a construção divina, para que NADA RESTASSE.
Num segundo momento, a Divindade parece mudar de ideia, propondo um restart, um reboot, uma reinicialização do sistema. “Farei chover por 40 dias e 40 noites”, diz o Divino. Boa parte será sim destruída, mas não toda a infraestrutura da Criação. A intenção é começar de novo, dar uma nova chance à humanidade. Apostar de novo na capacidade do humano de ser empático, de se importar com o outro, de escolher pela vida, de promover a justiça social, de não desprezar seu semelhante, de não lançá-los à própria sorte, de não zombar de seu sofrimento, de reconhecer a humanidade plena do outro.
A aposta na Arca é a escolha divina em depositar Sua confiança em cada um de nós. A Divindade acredita que o ser humano não cometerá o mesmo erro, não optará pelo ódio, pela violência e pela morte, mas sim, voltará a seu caminho, escolhendo pela vida e pela bênção – como há poucas semanas ecoava a Torá: Vida, não Morte; Bênção, não Maldição.
A curiosa história da Torre de Babel conta sobre como os habitantes de Shinar desejavam atingir a grandiosidade, a fama, o reconhecimento e a glória através da construção de uma torre tão alta que chegaria até os céus. Segundo a Torá, Deus vê nisso um grande risco e decide frustrar seus intentos.
Mas qual era o erro humano? Qual era esse risco? – perguntaram nossos sábios já na antiguidade. Sua resposta no midrash é que, para atingir seus intentos, o povo de Shinar passou a desumanizar os operários, enxergar os trabalhadores como meras ferramentas para realizar seu plano megalomaníaco. Para eles, os demais seres humanos se tornaram completamente descartáveis, não mais merecedores de qualquer dignidade mínima.
O risco era que o ser humano se tornasse tão mesquinho, a ponto de se tornar completamente insensível à dor de seu semelhante, à fome e ao sofrimento de seus irmãos, também imagem e semelhança do Divino.
Estamos saindo de Tishrêi, mês de reinícios. Em sua última Festa nós recomeçamos um novo ciclo de leituras da Torá, iniciando um outro tipo de ano novo. Que saibamos recomeçar, jogando fora nas águas do dilúvio tudo o que é ruim, para que a torrente leve embora e destrua tudo o que não presta, tudo o que é fruto do ódio infundado e da violência gratuita, para que vejamos a bonança após a tempestade, restabelecendo a esperança na humanidade de cada pessoa. De todas as pessoas.
Shabat shalom,
Rabino Theo Hotz