Há dez semanas entoamos a melodia especial de Shirat Haiám na sinagoga e voltamos a rebobinar o Sefer Torá neste Shabat para lê-lo novamente. Naquele momento, sua leitura foi determinada pela sua posição na sequência de parashiot. Nesta semana, estamos nós mesmos deixando o Egito — e a tradição nos ensina que, no sétimo dia de Pêssach, cruzamos o mar em seco.

Mas antes mesmo da canção do mar, a parashá se inicia com uma declaração intrigante: por que Deus não levou o povo diretamente à Terra Prometida, embora fosse mais perto? [Ex. 13:17] Porque havia o risco de quererem voltar. O povo não estava pronto para ser livre. Por isso, Deus os fez andar “ao redor” [v. 18]. Entre o Egito e a Terra Prometida havia um deserto — assim como, entre a escravidão e a liberdade, é necessário um espaço de transformação.

Nesse mesmo trecho, encontramos um episódio aparentemente secundário e marginal: o resgate dos ossos de José. Diante de tantos fenômenos extraordinários, como as Dez Pragas que antecederam a saída, a abertura do mar, fazendo passar em seco os israelitas e afogando o exército egípcio — um gesto discreto, quase silencioso, poderia passar despercebido:

וַיִּקַּח מֹשֶׁה אֶת־עַצְמוֹת יוֹסֵף עִמּוֹ…
“E Moisés levou consigo os ossos de José, que havia feito os filhos de Israel jurarem…”
(Êxodo 13:19)

Contudo, a simplicidade desse acontecimento não deixou enublar a percepção dos sábios e intérpretes da nossa tradição. Or HaChaim interpreta esse gesto como uma forma de teshuvá póstuma: os descendentes dos irmãos de José, ao carregarem seus ossos, estariam reparando simbolicamente o ato que o levou ao Egito. A Mechilta de Rabi Ishmael amplia ainda mais o significado, sugerindo que não apenas os ossos de José, mas também os de seus ancestrais, foram retirados do Egito.

Outros comentários trazem camadas místicas. Segundo o Midrash Tanchuma, os egípcios submergiram o corpo de José no Nilo para abençoar suas águas. Ninguém saberia localizá-lo — exceto Serach bat Asher, neta de Yaakov, símbolo de continuidade e sabedoria, que revelou a Moisés onde encontrá-lo, tornando possível o resgate.

Já Kli Yakar explica que Moisés pensou: “O mar se abrirá no mérito de José”. Por isso, seus ossos foram levados em uma arca que acompanhou a Arca da Aliança durante toda a travessia.

Enquanto a Arca da Aliança carregava os princípios que nos conectam como povo, a arca da memória nos ligava aos que vieram antes de nós — daqueles de quem nos tornamos herdeiros e promotores do seu legado e ensinamentos.

Em cada Pêssach, somos convidados a ver a nós mesmos como se estivéssemos saindo do Egito hoje. E isto nos convoca a revisitar todas as experiências dos nossos antepassados, comer matsá, recontar a travessia, identificar nossos próprios faraós — e renovar nosso compromisso com a liberdade.

Mas também carregamos nos ombros a arca da memória.

Antes de finalizar a jornada festiva de Pêssach, recitamos o Izcor – serviço memorial que se conecta à liturgia de Iom Kipur e dos Shalosh Regalim (Pêssach, Shavuot e Sucot). O judaísmo, em sua sabedoria, equilibra a alegria de ocasiões festivas com o compromisso sagrado de reverenciar a memória dos nossos entes queridos que já não se encontram fisicamente entre nós.

A tradição judaica da recitação do Izcor também equilibra as necessidades emocionais e espirituais do enlutado à experiência comunitária, produzindo um ambiente de empatia e reverência.

Ao contrário da cultura ocidental, que trata o tema da morte pela régua do tabu, o judaísmo coloca a ausência em um lugar de honra e a transforma em presença, através da memória. A tradição judaica também nos proporciona um arsenal ritual (Shivá, Shloshim, Kadish, Yartseit e Izcor) para permitir a expressão da vivência do luto, a ressignificação da vida e a sintonia que nos conecta para além da morte.

Quantos de nós desejou alguma vez ter a oportunidade de mais um momento de interação com nossos entes queridos que partiram? Felizmente, os rituais judaicos ligados à vivência do luto (Shivá, Shloshim, Kadish, Yartseit e Izcor), nos convocam a manter um canal aberto de conexão afetiva com nossos familiares que se uniram à corrente da vida, com a possibilidade real de mantê-los vivos através das nossas memórias. E de todos esses rituais, Izcor é o que mais amplamente cria um espaço e tempo sagrados onde podemos abrir nossos corações e mentes para a possibilidade de uma interação genuína.

O rabino e psicoterapeuta Dr. Simcha Raphael chama Izcor de uma ‘janela’. “Prepare-se para abri-la!”, diz ele. No último dia de Pêssach, somos convidados a abrir essa janela de contato.

Permita-se nesse espaço criado no tempo, sentir sua presença enquanto reza. Abra espaço para um diálogo. Escolha o que gostaria de contar e se permita escutar as respostas com os ouvidos do coração.

A vida daqueles que amamos palpita em nós. Somos a expressão física deles nesta existência. Quando fazemos tsedacá em seus nomes, quando ensinamos o que aprendemos deles, quando damos continuidade aos seus feitos, prolongamos sua luz neste mundo e a fazemos brilhar em mais corações.

Assim como os israelitas carregaram a memória de José no deserto, nós também atravessamos nossas jornadas com a memória como guia. Que o mérito dos nossos queridos, suas histórias e seus valores, nos ajudem a dividir nossos próprios mares, para sairmos do que ainda nos oprime em direção à liberdade.
E que neste último dia de Pêssach, o amor que guardamos neles encontre passagem por essa janela sagrada que o Izcor abre — para preencher, mesmo que por um instante, as lacunas que suas ausências deixaram em nós.

Shabat Shalom ve’Pêssach Samêach!

Rabina Kelita Cohen
Academia Judaica da CIP