A cura de traumas através da teshuvá | Parashat Vaiêlech

O que somos capazes de lembrar? Qual é o limite da memória?

O escritor Jacques Fux escreveu um livro sobre o assunto, chamado Das coisas que não me lembro, sou. Significa que, em sua opinião, somos constituídos pelas nossas memórias, inclusive aquelas das quais não temos sequer a capacidade de nos lembrarmos.

Moisés, na parashá desta semana, fala a uma geração que não ouviu a voz de Deus no Sinai diretamente. É a geração que nasceu no deserto, posterior à saída da escravidão no Egito e ao evento subsequente da entrega da Torá. Esse mesmo povo, que agora cruzará o Jordão com Josué, é herdeiro daquela revelação do Sinai, através do ensinamento de Moisés.

E para que a memória se perpetuasse, “Moisés escreveu esta Torá e a entregou aos sacerdotes (…) e a todos os anciãos de Israel” [Deut. 31:9]. Alguns interpretam que “esta Torá” à qual a parashat Vaielech se refere é o livro de Devarim – o grande discurso de Moisés ao final dos seus dias, recontando todas as suas memórias da travessia pelo deserto.

Para que essa memória fosse apropriada por aqueles que não vivenciaram tais eventos e não se perdesse para as gerações seguintes, Moisés instruiu que, a cada sete anos (o ano da shemitá – descanso da terra), essa história deveria ser lida a todo Israel – homens, mulheres, crianças e estrangeiros em suas comunidades – durante a festividade de Sucot.

E Moisés disse que assim, “também os filhos desses, que não tiveram a experiência, escutarão e aprenderão a reverenciar o Eterno seu Deus…” [v. 13].

Aprendemos, dessa porção da Torá, que levamos conosco nossas próprias vivências e também o que viveram nossos antepassados, que de alguma maneira se perpetua em nós.

Na leitura da Torá desta semana, também lemos, na segunda manhã de Rosh Hashaná, a narrativa dramática da Akeidat Itzhak (as ataduras de Itzhak). Onde estava depositada a confiança de Itzhak? Ele subiu o monte ao lado de Avraham sem resistir, porque confiava em seu pai.

O que terá sentido enquanto esteve amarrado, deitado sobre o altar de sacrifício, vendo o cutelo na mão do seu pai vir em direção a si? Nós não teríamos como saber o que Itzhak sentiu, se a própria Torá não nos contasse. Ou melhor: se Yaacov, seu filho, não nos tivesse contado.

Encontramos o sentimento de Itzhak descrito na discussão que Yaacov tem com seu sogro Laván:

אֱלֹהֵי אַבְרָהָם וּפַחַד יִצְחָק הָיָה לִי…

Elohei Avraham u’pachad Itzhak haiá li

…o Deus de Avraham e os temores de Itzhak me acompanharam.

[Gênesis 31:42]

O que é esse temor de Itzhak que transcende à geração seguinte e influencia o modo de agir de Yaacov?

Nós carregamos traumas das gerações que nos antecederam, assim como também as inspirações e a sabedoria dos nossos antepassados. Somos o povo da memória. Reverenciamos nossos seres queridos que já não se encontram entre nós, e nos encarregamos de fazê-los presentes através da memória.

Um dos nomes de Rosh Hashaná é Iom haZicarón – o Dia da Memória. O Talmud, ao tentar explicar por que esse nome se associa à temática de Rosh Hashaná, nos diz que é o dia da lembrança divina do mérito de Avraham e Itzhak. De tal maneira que, nesses Iamim Noraim, podemos elevar nossos pedidos de misericórdia invocando o mérito de Avraham e Itzhak, e que Deus se lembre disso.

Rosh Hashaná como “זִכְרוֹן תְּרוּעָה” (zichron teru’á, “memorial com toque”) também sugere que o toque do shofar tem o poder de trazer à tona, à memória, todos os nossos feitos, contribuindo para o nosso percurso de teshuvá, sem deixar nada oculto.

Isso significa também trazer à tona os nossos medos. Ao olhá-los de frente, revisitá-los, temos a possibilidade de transformar pachad (os temores que nos paralisam) em norá (temores que nos movem). Transformar aquilo que nos paralisa e nos estagna em uma força propulsora de ação.

Afinal, não queremos que a nossa vida esteja sustentada somente no trauma, que se perpetua e nos coloca na condição de vítimas do passado. Queremos o orgulho da nossa herança, da ética que nos foi ensinada por nossos patriarcas e matriarcas, e escrita por Moisés para que fosse contada de geração em geração. Esses ensinamentos, ainda hoje, constituem o eixo de sustentação do mundo.

Que cada um(a) de nós possa ser um elo forte nessa corrente intergeracional que nos conecta diretamente à ética do Sinai, não apenas transmitindo de forma passiva o que recebemos daqueles que nos precederam, mas também fazendo teshuvá do que recebemos.

Que, através da teshuvá, possamos encontrar caminhos de cura para o que entregaremos às próximas gerações.

Shabat Shuvá Shalom!

Shaná Tová u’Chatimá Tová!

Rabina Kelita Cohen

Academia Judaica da CIP