A espiritualidade da gratidão e da memória | Parashat Ki Tavô

A parashá Ki Tavô começa com um gesto simples e profundo: a mitsvá dos bikurim, trazer os primeiros frutos da terra, colocá-los numa cesta e levá-los ao Templo. Não apenas como oferta, mas como uma forma de viver a nossa história. O agricultor não entrega os frutos em silêncio. Ele fala. Ele lembra. Ele diz: “Um arameu errante foi meu pai, e ele desceu ao Egito, e lá se tornou uma grande nação…” (Devarim 26:5). Esse pequeno trecho encapsula a memória coletiva do povo judeu — fragilidade, exílio, opressão, libertação e gratidão. 

O ritual não é só agrícola, é existencial. É como se a Torá nos ensinasse que toda colheita — seja de trigo, de uvas ou de momentos de vida — só se torna plena quando é acompanhada de memória e gratidão. É preciso lembrar de onde viemos e agradecer por estar aqui. 

A espiritualidade de Ki Tavô é a espiritualidade do reconhecimento. Reconhecer que a vida é frágil, que nada é garantido, que cada fruto é milagre. E, ao mesmo tempo, reconhecer que somos parte de uma história maior, feita de exílios e libertações, lágrimas e esperanças. 

Logo depois, porém, o texto nos sacode com tochachot — as advertências e maldições. A alegria da oferta é seguida pelo eco das consequências de esquecer. 
E talvez a chave esteja justamente aí: o esquecimento seja a verdadeira maldição. Esquecer de agradecer, esquecer a história, esquecer a responsabilidade. 
A. J. Heschel dizia que “a vida sem gratidão é vida sem alma”. Ki Tavô nos convida a reencontrar a alma, a transformar nossos dias em oferenda, nossos gestos em primícias. 

Às vésperas de Rosh Hashaná, este texto ressoa ainda mais forte. Pois também nós, diante do Livro da Vida, trazemos nossas primícias. Não frutos da terra, mas frutos de nossas ações. Colocamos diante de Deus e diante de nós mesmos aquilo que cultivamos no ano que passou: palavras e silêncios guardados, abraços oferecidos e omissões sofridas. 

Viver cada ato como bikurim, como primícia. Lembrar que cada encontro é um primeiro fruto, cada gesto pode ser uma oferenda, cada dia um recomeço. 

Que possamos colher em nossa vida o fruto da gratidão — e que esse fruto nos dê força para atravessar as sombras e caminhar em direção à bênção. 

Assim se habita a terra prometida. Com uma atitude que nos faça dignos herdeiros de uma promessa que não está garantida para sempre. Que deve ser reconquistada. Uma terra que não é um troféu, que demanda entrega. Ki Tavô não significa que chegamos ao destino e o trabalho acabou. É um caminho de entrega e dedicação para recolher os frutos — às vezes mais, às vezes menos — para voltar a oferendar, a dar e receber, numa dinâmica que, enquanto estamos vivos, continua nos exigindo e continua nos abençoando. 

Shabat Shalom 

Rabino Dario Bialer