Calligaris confessou no seu último livro que não gosta quando perguntam para ele “tudo bem?”, e que costuma responder “não sei”.

“Tudo bem”, “tudo bom”, “tudo de bom”, são expressões que repetimos diariamente. Entretanto, cabe se perguntar se existe algo que seja só bom, faça só bem, e abrace, de alguma forma, todo o bem. Se existe alguma situação que seja somente boa para todos ao mesmo tempo. Se existe alguma ideia, algum sistema político ou econômico, alguma ação inclusive alguma característica humana que sejam somente boas, que tragam somente bem para todos. Seguramente não.

O capitalismo como o liberalismo ajudam ao esforço e a certas liberdades em detrimento dos mais fracos e mais desprovidos de igualdade de oportunidades em algum momento dos processos. Os socialismos expressam sensibilidade pela igualdade e por algumas justiças e inibem outras justiças e capacidades. Ajudar o próximo pode fortalecê-lo como enfraquecê-lo, pode nos tornar sensíveis como cínicos, altruístas como ególatras, enfatizar nosso amor por outros como apenas por nós mesmos, assim como o humor, o silêncio, a cumplicidade.

O momento social, político e cultural parece ter extinguido a capacidade de olhar deste modo complexo e sofisticado. Todos em alguma medida falamos, pensamos, votamos e agimos como acreditavam os antigos gnósticos, como se tudo estivesse dividido entre luz e escuridão, nós e eles, os filhos da luz e os das trevas.

A parashá da semana foi, e ainda é interpretada, em muitos círculos e tendências, com a mesma dicotomia simplista e maniqueísta: Jacó é nosso patriarca e representa o bem. Esaú é o pai de nossos inimigos de todos os tempos, incluído Haman o persa, Torquemada o espanhol, Hitler o germanico. Segundo essa interpretação absolutamente a-histórica, Jacó estudava a Torá(!) ainda não escrita, e era espiritual, se bem que era um pastor na era do bronze, e Esaú praticava a guerra espartana antes de Esparta e era materialista, somente por que era caçador ou agricultor e hábil com as mãos segundo o texto.

Quero discordar profundamente desta leitura e fortalecer outra não menos antiga, mas infelizmente talvez menos divulgada. 

Trata-se de dois filhos gêmeos dos mesmos pais. Netos do mesmo patriarca e da mesma matriarca. Sobre um o texto diz que trabalhava no campo e o outro ficava na tenda. Um cuidava do gado, o outro trabalhava na terra. Um é identificado pela voz e o outro pelas mãos. Até aqui o texto. 

A interpretação integradora, diz: ambos são parciais como todos nós, ambos complementares como todos nós. Cuidar é importante, assim como ousar e desenvolver. Ser introspectivos, assim como ser executores. Saber pensar, sentir e falar assim como saber realizar. As mãos de Esaú podem significar violência mas também arte e carícias. Assim como a voz de Jacó pode representar música, alento e inspiração, mas também hipocrisia, demagogia, manipulação e insulto.

Uma leitura mística diz que Jacó e Esaú não eram duas pessoas. Só uma. Com múltiplos aspectos melhores e piores que podiam se desenvolver ou destruir mutuamente de diversas formas.

Acredito que olhando assim para nós, para os que estão à nossa volta, para os amigos e inimigos e para os distantes e desconhecidos, nos ajudará a retomar a possibilidade de um mundo mais colorido e diverso capaz de paz, amplitude e plenitude. 

 

Shabat shalom,

Rabino Dr. Ruben Sternschein