
Parashat Noach é a história do primeiro “dia depois” da humanidade — o relato de um homem que atravessa uma tempestade e precisa aprender a viver com o que resta.
Quando o mundo se desmorona, quando a vida nos coloca à prova e nada parece sólido, a Torá nos oferece uma narrativa cheia de sensibilidade.
Depois de quarenta dias e quarenta noites de dilúvio, depois do silêncio das águas e do medo da extinção, Noach finalmente abre a arca e pisa novamente na terra. O ar é novo, o horizonte parece limpo — mas dentro dele ainda ecoa o som da tempestade.
O que faríamos nós, se fôssemos esse sobrevivente? Qual seria nossa primeira atitude ao sair da arca?
A Torá responde:
“E edificou Noach um altar ao Eterno… e ofereceu holocaustos sobre o altar.” (Bereshit 8:20)
A primeira coisa que Noach faz é construir um altar e agradecer.
Agradeça por estar vivo, por ter atravessado o caos, por ter diante de si a possibilidade de recomeçar.
Mas logo em seguida lemos:
“E começou Noach a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do vinho, e embriagou-se…” (Bereshit 9:20–21)
A segunda coisa que ele faz é beber — não apenas para celebrar, mas seguramente para esquecer.
Para silenciar o eco das águas e anestesiar o peso da dor dilacerante.
Entre o altar e o vinho está o intervalo frágil entre a gratidão e o vazio — o mesmo espaço que habitamos quando a tempestade passar, mas o mundo ainda não voltou ao lugar.
O “dia depois” é o tempo do recomeço, mas também o tempo de curar as feridas.
É quando o agradecimento e a dificuldade de lidar com a nova realidade se misturam.
É quando percebemos que não basta virar a página — é preciso aprender a ler o que ficou escrito nela.
O Midrash diz que, ao ver o mundo destruído, Noach chorou e perguntou a Deus:
“Ribono Shel Olam, onde está Tua misericórdia?”
E Deus respondeu:
“Agora te lembras de pedir? Quando anunciei o dilúvio, por que não clamaste por teu mundo?”
Noach sobreviveu — mas esqueceu de interceder pelos outros.
Em nossos dias, Israel tem vivido o oposto desse esquecimento.
Mesmo em meio à tempestade — com mísseis cruzando o céu, sirenes ecoando e o medo constante de uma guerra — ninguém tentou se salvar sozinho.
Vimos um povo reagir com uma solidariedade que ultrapassa todos os limites imagináveis: famílias acolhendo desconhecidos, comunidades inteiras se organizando para cuidar dos feridos, voluntários atravessando o país para consolar, alimentar e proteger.
Enquanto o perigo se espalhava, espalhou-se também a compaixão.
Enquanto chovia destruição, floresceu o cuidado.
Israel se tornou, neste tempo, o retrato vivo de uma fé que não se recolhe, mas se entrega; que não se fecha na arca, mas abre suas portas para o outro.
Uma fé que entende que a salvação verdadeira não está em sobreviver sozinho — mas em permanecer humano, mesmo sob a ameaça do fogo inimigo.
E agora, com o retorno da maioria dos reféns para casa, um país inteiro atravessa o seu “dia depois”.
O retorno traz lágrimas, abraços e gratidão — mas também o peso do que foi perdido.
Há feridas que se veem e outras que levarão tempo para cicatrizar.
O desafio, como o de Noach, é não parar no altar nem se perder no vinho: é agradecer e cuidar; é chorar e se abraçar; é reconhecer tudo o que foi quebrado — e, ainda assim, escolher reconstruir.
O relato da Torá não termina com o arco-íris. Ela segue, chamando Avraham — o primeiro a ouvir a dor do mundo e a responder Hineni.
Talvez esse seja o nosso chamado agora: seguir adiante, mesmo com o coração partido, e transformar essa lembrança da tempestade em compromisso com a vida.
Porque o arco-íris não apaga as nuvens — apenas nos lembra que, mesmo sob elas, a luz ainda encontra um caminho.
Shabat Shalom!
Rabino Dario Bialer