Abandonando “uma única linguagem e palavras únicas”

Yeshayahu Leibowitz (1903-1994) foi um intelectual ortodoxo ativo no debate público durante as primeiras décadas do Estado de Israel. Iconoclasta por natureza, ele não temia tomar posições controversas e desafiar o senso comum; por isso, foi muitas vezes, considerado a consciência ética de Israel.

Em seu comentário para a parashá desta semana, parashat Noach, Leibowitz segue seu estilo característico e apresenta uma leitura diferente do convencional. Uma das histórias mais conhecidas da Torá, o episódio da Torre de Babel começa afirmando que “toda a terra tinha uma única linguagem e palavras únicas” [1]. Na seqüência, descobrimos como as pessoas, detentoras de novas tecnologias de construção, tentaram construir uma cidade e uma torre que chegasse até o céu. Incomodado, Deus misturou seus idiomas e os espalhou por toda a terra. Incapazes de coordenar seus esforços, o povo abandonou o projeto de construção da cidade e da Torre.

Em geral, a atitude Divina de criar vários idiomas é entendida como uma punição às pessoas e um obstáculo para que possamos atingir maior entendimento entre todos os povos da Terra. Indo na contramão da maior parte dos comentaristas, Leibowitz afirma a respeito desta história que “este decreto não foi um castigo mas, pelo contrário, uma medida tomada para o benefício da humanidade” [2]. Na sua opinião, o cenário de “uma única linguagem e palavras únicas” refletia uma sociedade que não criava espaço para divergências, nas quais toda a população era obrigada a pensar da mesma forma. Ele escreveu: “não se pode imaginar maior tirania do que esta, não se pode imaginar maior infertilidade mental e moral do que esta – que não deva haver exceções e que não deva haver desvios do que é aceito e acordado, situação mantida pelos meios artificiais de uma cidade e uma torre.”

Não tem sido raros os episódios no nosso próprio tempo em que temos expectativas de que o consenso seja estabelecido com a supressão das opiniões contrárias. Muitas vezes, esta postura é adotada com relação a divergências dentro da comunidade judaica; noutras, com relação a questões políticas ou ideológicas mais amplas. Parecemos pensar: “seria tão fácil se todos concordássemos com a minha opinião!” A vida em uma sociedade diversa e que valoriza a democracia como a nossa envolve, necessariamente, o convívio com aqueles que têm opiniões diferentes, algumas vezes, radicalmente diferentes das nossas. A divergência, tantas vezes vista como algo negativo, é fundamental para o aperfeiçoamento das nossas próprias posições ou, se for o caso, para reconhecermos que elas estavam erradas.

Apontando para o potencial criativo de novas ideias, Leibowitz afirmou: “Não é coincidência que tenha sido só depois do episódio da Torre de Babel, quando não havia mais ‘uma linguagem única’ e não havia mais ‘um discurso’ para toda a humanidade, que Avraham pudesse ter sido capaz de aparecer e se rebelar contra o mundo de seu pai Terach e os seus ídolos (…). Em um mundo de ‘uma linguagem e um discurso’, Avraham nunca poderia se insurgir contra Terach (…).”

Que neste Shabat, a imposição dos nosso próprios pontos de vista dê espaço para a valorização da diversidade de ideias e de opiniões, que novas abordagens sejam avaliadas pelos seus méritos e falhas, e não consideradas distúrbios ao consenso pré-estabelecido. Que o exemplo de Yeshayahu Leibowitz nos sirva de inspiração para uma vida profundamente enraizada em valores, práticas e textos judaicos,  mas que deu espaço também para a criatividade intelectual e se permitiu desafiar o senso comum.

Shabat Shalom,

 

Rabino Rogério Cukierman

[1] Gen. 11:1

[2] Yeshayahu Leibowitz, Earot leParshiot haShavua, Cap. 2: Bereshit – Noach.