Há épocas em que nos acostumamos a ver nas páginas dos jornais termos técnicos profissionais que, em outras situações, a maioria de nós nunca sonharia em conhecer. Foi assim que, durante os anos da pandemia, nos tornamos experts nos diversos tipos de exame para detecção do vírus, de tecnologias de vacinas, e por aí vai… Nas últimas décadas, mesmo quem não é advogado, tem se acostumado com debates sobre o “ativismo judicial”. Esta conversa, que, entre outros países, tem acontecido com intensidade com relação aos tribunais superiores dos Estados Unidos e do Brasil (STF, STJ, TSE), ganhou maior intensidade nos últimos meses devido a um polêmico projeto do governo de Israel, que busca regulamentar a questão.

Mas, afinal, do que estamos falando? Eli Salzberger, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Haifa, nota que há dois tipos de ativismos judiciais. O primeiro se relaciona com a latitude que juízes têm para interpretar a legislação ou para divergir da jurisprudência adotada. O segundo tipo de ativismo judicial tem a ver com a inter-relação entre os poderes “focando no papel dos tribunais em moldarem tomadas de decisões coletivas na sociedade, relativamente ao papel dos outros Poderes do governo — o Legislativo e o Executivo, e em relação à opinião pública.” [1]

Em geral, a crítica do ativismo judicial foca no fato de um grupo de juízes não-eleitos interferir nas políticas públicas determinadas por assembléias legislativas ou por governantes, ambos eleitos. Em sua defesa, argumenta-se que a defesa de certos valores sociais fundamentais não podem ficar à mercê da volatilidade da opinião pública a cada ciclo eleitoral — nessas situações, quando se coloca em risco o respeito aos Direitos Humanos, ou à Democracia, os tribunais superiores precisam intervir na defesa destes valores.

O professor Salzberger diz que “o sistema judicial israelense é apresentado, tanto por acadêmicos israelenses quanto não-israelenses como um dos mais ativistas do mundo, mas também, um de alta qualidade.” Como evidência da última afirmação, ele cita um alto membro do sistema judicial britânico, que teria afirmado que “a Suprema Corte israelense é uma das melhores cortes que ele conhece em todo o mundo”.

O desenvolvimento das interpretações e das implicações legais a respeito de um trecho da parashá dupla desta semana, Matot-Massei, pode nos dar uma figura das remotas origens do ativismo judicial na tradição judaica. Para entendermos a questão em jogo, precisamos retornar para a leitura da Torá da semana passada, parashá Pinchás. Lá, um homem hebreu (Tselofchád) morre deixando cinco filhas. Pelas regras vigentes na época, como ele não tinha filhos homens, sua herança seria perdida pela família. [2] As filhas de Tselofchád questionam Moshé sobre a justiça desta regra; Moshé leva o questionamento a Deus, que decide que as filhas têm razão e que, dali em diante, quando não existirem filhos homens, as filhas receberão a herança de seu pai. Assim terminou a história na semana passada.

No entanto, há uma reviravolta na história na leitura desta semana. Um grupo de israelitas da mesma tribo que Tselofchád abordou Moshé reclamando da decisão que havia sido tomada com relação às filhas de Tselofchád. Eles argumentavam que, se elas se casassem fora de sua tribo, a propriedade seria transferida para a tribo de seu marido, gerando uma perda coletiva para a tribo original. Novamente, Moshé leva a questão a Deus, que dá razão aos membros da tribo, estabelecendo que mulheres que recebessem herança de seus pais apenas poderiam se casar com membros da própria tribo. [3]

Ainda que a primeira decisão em relação a mulheres poderem receber herança de seus pais vá na direção de um tratamento legal mais igualitário entre homens e mulheres, fica claro que é um passo bastante tímido, não chegando nem perto de estabelecer uma igualdade de fato. Pior ainda, ao estabelecer restrições para com quem estas mulheres herdeiras podem casar, a segunda decisão caminha na direção contrária à igualdade.

Por um motivo ou por outro, os Rabinos do Talmud decidiram que esta lei bíblica não poderia ser cumprida da forma como ela estava escrita. No entanto, como é tradicional do discurso rabínico, os Sábios não contrariaram a regra diretamente em seu aspecto ético. A prática rabínica clássica é implementar profundas revoluções através de narrativas de continuidade, e aqui não foi diferente. Em uma longa troca de opiniões, registrada no Talmud Bavli, os Rabinos estabelecem (1) que a regra se aplicaria apenas à geração das filhas de Tselofchád, não depois disso; e (2) as filhas de Tselofchád estariam isentas de cumprirem a regra e poderiam casar com pessoas de qualquer tribo! [4]

Desde os tempos talmúdicos, a tradição rabínica tem “reinterpretado” inúmeras regras bíblicas, estabelecendo mudanças interpretativas importantes, ainda que caracterizando-as como continuação do que sempre houve. Em particular, estas atitudes foram tomadas para salvaguardar a dignidade humana.

Que todas as instâncias da nossa sociedade possam agir da mesma forma e, proteger a dignidade humana: seja através de legislação, de políticas públicas ou da interpretação ativa da lei — que possamos rejeitar mudanças que caminhem na direção contrária, parta ela de onde partir.

 

Shabat Shalom!

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Eli M Salzberger, “Judicial Activism in Israel” (2003), p. 2.

[2] Num. 27:1-11

[3] Num. 36:1-12

[4] Talmud Bavli Bava Batra 120a-120b