Um ano mais se passou e voltamos a nos encontrar aos pés do Sinai, “BEHAR” [no monte, em português]. Em geral, nos referimos aos ciclos pelos quais passamos – embora esta metáfora talvez esta não seja a melhor representação das experiências humanas. As vivências não são circulares (ou, ao menos, não deveriam ser). Talvez a forma mais adequada para representar o recorrido que muitas vezes percorremos pelo mesmo caminho seja uma espiral, não um círculo. Afinal, o desenvolvimento humano acontece orientado ao futuro. Significa dizer que, mesmo que visitemos um lugar onde já estivemos antes, mesmo que leiamos um livro por segunda ou terceira vez, mesmo que abracemos os nossos filhos em cada manhã e ao anoitecer, a experiência anterior não é a mesma da atual. 

Na minha jornada pessoal, foi Behar o meu primeiro contato direto com o pergaminho da Torá, no Kotel. A partir de então, a celebração de aniversário de bat mitsvá é um reencontro com o mesmo texto. Mas a relação que se estabelece entre leitor(a) e obra já não pode ser a mesma. O texto está ali, gravado em tinta sobre o couro, e nada pode mudá-lo. No entanto, a pessoa em frente ao texto hoje não é a mesma de outrora. Mesmo lendo o mesmo texto, novas palavras saltam aos olhos e produzem novas surpresas, ou mesmo estranhamentos.

Nesta ocasião, certamente movida por uma expectativa ardente de liberação dos reféns em Gaza, a palavra da porção semanal que salta aos olhos é liberdade.  

וּקְרָאתֶם דְּרוֹר בָּאָרֶץ לְכׇל־יֹשְׁבֶיהָ

“… e proclamarei liberdade em toda a terra, a todos os seus moradores”.

(Lev. 25:10)

O texto bíblico em destaque demanda de nós “proclamar liberdade”. Na narrativa da entrega da Torá no Sinai, o valor central de Pessach aparece vestido de uma forma nova. O Festival de Pessach é também chamado Zman Cheiruteinu (Tempo da nossa Liberdade), mas a palavra liberdade no texto desta parashá não é cheirut, senão d’ror. É Rashi, citando palavras do Rabi Yehuda, quem traz que d’ror denota liberdade.

Pessach não é chamada de “tempo do nosso d’ror”. Pessach é o tempo de cheiruteinu. Cheirut é uma palavra que nunca aparece na Torá. Ela surge no texto no período rabínico.

Paradoxalmente, essa raiz aparece na Torá no livro do Êxodo, quando Moisés recebe de Deus as tábuas no Monte Sinai. O texto diz que as tábuas eram “obra de Deus, e a escrita estava charut  [gravada] nas tábuas” (Êxodo 32:16). No entanto, os rabinos sugerem em Pirkei Avot: “Não leia charut [gravado], mas cheirut [liberdade], pois não há pessoa livre, exceto aquela que se ocupa com o estudo da Torá” (Avot 6:2). Por meio do jogo de palavras dos nossos sábios, surge uma definição completamente diferente de liberdade. Uma liberdade que é acessada por meio do estudo.

Não casualmente o símbolo do estudo por excelência seja um livro. Nesse sentido, não poderia ter sido escolhido um melhor nome para ‘livro’, levando-se em conta que a educação liberta. Ele, o livro, já não ocupa a mera classe gramatical de substantivo, mas de verbo (o verbo livrar, libertar, conjugado na primeira pessoa do singular). “Eu livro, digo eu, o livro”. 

As palavras contidas no pergaminho da Torá estão charut (gravadas), mas a minha relação com o texto pode ser libertadora e tem o poder de mudar as minhas atitudes.

Enquanto em Pessach há um chamado a cada indivíduo para fazer sua escolha pela liberdade (cheirut), em Shavuot somos convocados a agir para dar liberdade a outros (d’ror), no sentido de fazê-los saber que são capazes de fazer suas próprias escolhas.

D’ror e Cheirut falam de duas faces da liberdade, sendo que uma não é possível sem a outra. Só depois de cruzar o Mar Vermelho e decidir seguir em frente é que, desde o lugar de um ser livre, se é convocado a empenhar os maiores esforços para que outros possam exercer a sua liberdade.

Desde o 7 de outubro, nossa liberdade tem estado interditada. Mas como Viktor Frankl nos recorda, mesmo nos lugares mais sombrios, mesmo nas circunstâncias mais desesperadoras, cheirut é possível.

 

Shabat Shalom!

Rabina Kelita Cohen