“Tudo bem”, “tudo bom”, “tudo de bom”, são expressões que repetimos com frequência. Entretanto, cabe se perguntar se existe algo que seja só bom, faça só bem, e abrace, de alguma forma, todo o bem. Se existe alguma situação que seja somente boa para todos ao mesmo tempo. Se existe alguma ideia, algum sistema político ou econômico, alguma ação, alguma característica humana que seja somente boa, que traga somente bem para todos. Seguramente não.
O capitalismo, como o liberalismo, ajudam ao esforço e a certas liberdades em detrimento dos mais fracos e mais desprovidos de igualdade de oportunidades em algum momento dos processos. Os socialismos expressam sensibilidade pela igualdade e por algumas justiças e inibem outras justiças e capacidades. Ajudar o próximo pode fortalecê-lo como enfraquecê-lo, pode nos tornar sensíveis como cínicos, altruístas como ególatras, enfatizar nosso amor por outros como apenas por nós mesmos, assim como o humor, o silêncio, a cumplicidade.
De igual modo poderíamos analisar aquilo que nos parece ruim.
O momento social, político e cultural do Brasil, dos EUA, de Israel, da Inglaterra parece ter extinguido a capacidade de olhar desse modo complexo e sofisticado. Todos, em alguma medida, falamos, pensamos, votamos e agimos como acreditavam os antigos gnósticos, como se tudo estivesse dividido entre luz e escuridão, nós e eles, os filhos da luz e os das trevas.
A parashá da semana foi, e ainda é, interpretada em muitos círculos e tendências com a mesma dicotomia simplista e maniqueísta: Jacó é nosso patriarca e representa o bem. Esaú é o pai de nossos inimigos de todos os tempos, incluido Haman o persa, Torquemada o espanhol, Hitler o germanico, Arafat o palestino, Sadam Hussein o iraquiano, Khadafi o líbio. Jacó estudava a Torá (ainda não escrita) e era espiritual, era um pastor na era do bronze; e Esaú praticava a guerra espartana (antes de Esparta) e era materialista, somente porque era caçador e hábil com as mãos, segundo o texto.
Quero discordar profundamente dessa leitura e fortalecer outra não menos antiga, mas infelizmente talvez menos divulgada.
Trata-se de dois filhos gêmeos dos mesmos pais. Netos do mesmo patriarca e da mesma matriarca. Sobre um, o texto diz que trabalhava no campo; o outro, ficava na tenda. Um cuidava do gado o outro trabalhava a terra. Um é identificado pela voz e o outro pelas mãos. Até aqui, está escrito no texto.
A interpretação integradora diz: ambos parciais como todos nós, ambos complementares como todos nós. Cuidar é importante, assim como ousar e desenvolver. Ser introspectivo, assim como ser executor. Saber pensar, sentir e falar, assim como saber realizar. As mãos de Esaú podem significar violência, mas também arte e carícia. Assim como a voz de Jacó pode representar música, alento e inspiração, mas também demagogia e manipulação e insulto.
Uma leitura mística diz que Jacó e Esaú não eram duas pessoas. Só uma. Com múltiplos aspectos melhores e piores que podiam se desenvolver ou destruir mutuamente de diversas formas.
Acredito que olhando assim para nós, para os que estão à nossa volta, para os amigos e inimigos e para os distantes e desconhecidos, nos ajudará retomar a possibilidade de um mundo mais colorido e diverso, capaz de paz, amplitude e plenitude.
Shabat Shalom,
Rabino dr. Ruben Sternschein