Costumamos sorrir com orgulho diante do famoso ditado que diz: “2 judeus = mais de 4 ideias”. De fato, a Bíblia mostra modelos contemporâneos diferentes, como Abraham e Lot a respeito da atitude frente ao desconhecido, ou Moshé e Aharon frente a conflitos e discórdia. Também o Talmud detalha discussões, muitas vezes inconclusas ou resolvidas, integrando posicionamentos díspares de modos criativos. Na Idade Média, partilhavam o mesmo judaísmo com linhas muito díspares, como a racionalista e a mística.
Entretanto, a parashá da semana mostra uma discórdia que acaba destruindo um lado.
A liderança de Moshê é desafiada por Côrach, Datan e Aviram. A disputa acaba em que a terra os engole.
O midrash — que é, em si, uma tradição extremamente democrática e pluralista, uma vez que aceita interpretações muito diversas e amplas — pergunta-se intensamente qual teria sido a argumentação dos rebeldes para merecer semelhante castigo. Uma das hipóteses diz que Côrach, em sua ambição pelo poder em si, sem um verdadeiro plano alternativo de liderança, usava a demagogia. A cor azul, necessária para os fios dos tzitzit, era extremamente cara e, portanto, foi prescrita para apenas um deles. Como era muito rico, Côrach teria dito para Moshé: “e se eu providenciar um talit que é todo azul, para todo mundo, ainda precisaríamos dos tzitzit azuis?”. Com isso, pretendia mostrar que a liderança de Moshé é mesquinha e a dele generosa. Um leitor tardio do midrash sugeriu que o azul representa o céu. A ideia de que apenas um dos oito fios seja azul indicaria que cada um tem apenas uma pequena porção do céu. Para completá-lo, precisa dos outros. Das verdades dos outros. Da humildade para aceitar que precisa se completar de verdade com o olhar dos outros para alcançar algo mais do céu.
Ou seja, Côrach não queria apenas um pouco de poder, ele pretendia ter todo o poder e manipulava a tradição para isso. Ele era um líder antidemocrático que pretendia vozes autossuficientes e únicas. A disputa não seria entre duas idéias legítimas, e sim entre uma ideia plural e uma que pretendia acabar com qualquer outra.
O midrash, incomodado com o texto que deixava Moisés e sua liderança como antidemocráticos, o deixou extremamente pluralista. Por meio de uma interpretação que foi muito além do texto e realizou em si mesma um ato de muita liberdade e pluralismo. Para aceitá-la, o leitor precisa da mesma abertura.
Talvez consigamos aspirar ao céu apenas ao adotarmos a postura paradoxal de acreditar profundamente na própria verdade e, ao mesmo tempo, ter espaço para as verdades dos outros.
Shabat shalom,
Rabino dr. Ruben Stersnchein