“E qual é o meu tempo de vida?
Sou como um homem que saiu do Egito:
O Mar Vermelho se divide e eu atravesso em terra seca, duas paredes de água,
à minha direita e à minha esquerda.
O exército do Faraó e os seus cavaleiros atrás de mim.
Diante de mim, o deserto,
Talvez a Terra Prometida também.
É este o tempo da minha vida.”

[Yehuda Amichai]

O poema de Yehuda Amichai, escrito no final do séc. XX, poderia facilmente ter sido declamado por Moisés, tanto na saída do Egito ao cruzar o mar, quanto no final da travessia pelo deserto, tendo diante de si a Terra Prometida, à qual ele não entraria – e por isso mesmo, o espaço para a incerteza, “talvez”. Mas essas palavras não apenas cabem na boca de Moisés, senão de todos nós, que nos identificamos como pertencentes ao povo de Israel. 

Tanto Shirat haYam (o hino de agradecimento, ao começo da travessia pelo deserto) quanto Ha’azínu (o hino da esperança, ao final da travessia), marcam pontos de inflexão na vida de Moisés e do povo, cujo desafio maior parece ser o que está por vir, o desconhecido, o inseguro. 

Como comenta Gunther Plaut, esses dois poemas podem “ser vistos como a moldura da experiência do deserto”, uma experiência marcada pela ambivalência na relação entre o divino e o humano. Presença e ausência; cuidado e abandono; justiça e compaixão; lealdade e ingratidão; estão todas elas presentes na poesia que põe fim a um ciclo e dá lugar a um novo. 

E justamente quando estamos diante do novo, prestes a entrar em um novo ciclo, a poesia nos convida a olhar para trás: “Lembra-te dos dias de outrora” [v. 7]. Aprenda dos seus pais, dos anciãos, mantenha a cadeia de transmissão generacional que foi anunciada pelos nossos sábios [Pirkei Avot 1:1]1, e ampliada pela rabina Rinat Tsefania2 – afinal, a transmissão se dá através de homens e mulheres.

Para andar pra frente, precisamos olhar pra trás, fazer teshuvá. A metáfora da poesia de Ha’azinu é a própria expressão do que acontece conosco ao momento da sua leitura no ciclo anual. E neste ano, isto se torna ainda mais contundente. Estamos entrando em um novo ano, um novo ciclo, deixando pra trás um ano árido, no qual cruzamos o deserto com nossos corações dilacerados. A sobrevivência de Israel, descrita em forma poética em Ha’azinu, está sendo novamente colocada à prova. 

Mas, diante da tragédia, pode haver poesia? De acordo com Adorno, esse paralelo é uma aberração. Disse ele: “escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro”. Mas não é isto que poetas israelenses demonstraram no último ano, e a educadora israelense Rachel Korazim reforça: “a poesia após 7 de outubro é, de fato, necessária e sagrada”.

E vemos isto no poema Ha’azinu. O poema alerta, instrui e dá esperança. E a poesia produzida pós 7 de outubro protesta e busca traduzir em palavras a experiência silenciosa do incompreensível. O poeta Avraham Sharon: “Precisaremos de um novo idioma, porque nossas palavras existentes não podem conter tudo o que sentimos depois do 7 de outubro”. E outro poeta, Michael Zatz, completa: “Todos à minha volta estão falando outra língua; uma que eu reaprendo de novo depois de 7 de outubro: hebraico.”

A mensagem de esperança para hoje foi escrita há milênios, em uma linguagem atemporal:

 

“Eu trago a morte e eu dou a vida; eu feri e eu curarei.” [Dt. 32:39]

Que neste novo ciclo, o ano 5785, a vida emerja da escuridão dos túneis de Gaza, e os corações feridos de toda uma nação encontrem caminhos de cura.

 

Shabat Shalom ve’Shaná Tová!

Rabina Kelita Cohen

Academia Judaica

 

Obs.: a poesia israelense pós 7 de outubro é tema do curso oferecido pela Academia Judaica, “Versos de Resiliência: Poesia Depois da Tempestade”, ministrado pela rabina Kelita Cohen. Saiba mais.

1“Moisés recebeu a Torá no Sinai; ele a transmitiu a Josué; Josué aos anciãos; os anciãos aos profetas; os profetas a transmitiram aos homens da Grande Assembleia.” (Pirkei Avot 1:1)

2“Miriam recebeu a Torá no Sinai; Ela a transmitiu às filhas de Tselofhad; as filhas de Tselofhad a Débora; Débora a Rute; Rute a transmitiu a B’ruria.” (Sidur T’filat ha’Adam, p. 258)

3Filósofo alemão Theodor W. Adorno, 1949

Hiperlink: https://academiajudaica.org/cursos/cursos/versos-de-resiliência-poesia-depois-da-tempestade-detail