
O livro de Deuteronômio, conhecido como Mishné Torá ou “Segunda Torá”, é um relato selecionado por Moisés para transmitir à geração nascida no deserto, que não vivenciou diretamente eventos fundacionais como o Êxodo do Egito ou a revelação no Monte Sinai. Essa escolha reflete a essência do que Moisés considerava vital para a continuidade do povo judeu.
Poderíamos dizer que na parashat Va’etchanán (a segunda do livro de Devarim), Moisés condensa a síntese do judaísmo, por ter nela a base espiritual, ética e legal judaica, assim como Hillel certa vez foi desafiado a resumir a Torá enquanto se equilibrava sobre um pé. Va’Etchanán contém os Asseret HaDibrot (Dez Mandamentos), a proclamação central do Shemá com o Ve’ahavta e a última linha do primeiro parágrafo do Aleinu, que juntos formam o alicerce da identidade judaica. A respeito desta última referência, vejamos:
וְיָדַעְתָּ הַיּוֹם וַהֲשֵׁבֹתָ אֶל־לְבָבֶךָ כִּי יְהֹוָה הוּא הָאֱלֹהִים בַּשָּׁמַיִם מִמַּעַל וְעַל־הָאָרֶץ מִתָּחַת אֵין עוֹד
“Saiba hoje e pondere em seu coração: Adonai é Deus no céu acima e na terra abaixo – não há outro.” [Deut. 4:39]
‘Saiba’ e ‘pondere’. Qual é a diferença entre saber e ponderar no coração? – perguntou Rav Kook, o pai do sionismo religioso. E logo acrescentou: e porque dizer ‘céu acima’ e ‘terra abaixo’, se já é sabido que os céus estão acima, e a terra está em baixo?
Para a primeira pergunta, Rav Kook propõe que um fala de um saber intelectual, enquanto o outro, de uma prontidão emocional. Segundo ele, esse versículo da Torá enfatiza a importância da coerência entre razão e emoção. Ou seja, o conhecimento não pode ser meramente teórico. É preciso internalizá-lo no coração também.
E em relação à segunda pergunta, Céus e Terra são metáforas para nossas duas capacidades principais: mente e coração. Uma vez mais, somos chamados a ser consistentes na nossa maneira de pensar (o nosso sistema de crenças) e em relação à nossa ação no mundo (o coração e a vontade estariam no nível prático da ação).
O Aleinu como um todo é uma oração judaica que fala tanto de esperança de um futuro melhor, quanto reitera a responsabilidade da humanidade de tornar o mundo um lugar melhor.
Essa oração, que inicialmente fazia parte apenas da liturgia de Rosh Hashaná, acabou se popularizando, vindo a ser incorporada na liturgia diária, ao término das 3 orações do dia. Acredita-se que o Aleinu tenha se popularizado por ser considerada uma oração potente de afirmação da redenção. E diante de tantas adversidades vividas por nosso povo, ela fortalecia nossa confiança e esperança na redenção.
Esta semana começou com o peso de Tishá be’Av, o dia mais triste do calendário judaico, quando lemos Meguilat Eichá (Lamentações) e recordamos as tragédias históricas do nosso povo. No entanto, ela culminará no Shabat Nachamu, o “Shabat do Consolo”, e em Tu be’Av, uma celebração de alegria. Essa transição do luto à esperança espelha a mensagem de Va’etchanan, que nos exorta a manter a confiança mesmo em tempos sombrios.
A atualidade, porém, intensifica nosso chamado à ação. As imagens chocantes de Evyatar David, mantido refém pelo Hamas há mais de 666 dias em condições de inanição extrema em um túnel em Gaza, abalam nossos corações. Junto a ele, outros 49 reféns aguardam libertação. Protestos em Jerusalém, Tel Aviv e ao redor do mundo clamam por negociações urgentes para seu retorno. A mensagem de Deuteronômio (4:39) – “saiba hoje” – ressoa como um apelo: nossa esperança na redenção exige ação imediata.
Durante a leitura da Torá neste Shabat e na liturgia diária do Aleinu, reafirmaremos nossa esperança no retorno dos sequestrados e nossa missão de trazer redenção ao mundo. Hoje, essa missão se traduz em um clamor urgente pelo retorno de Evyatar David e todos os reféns sequestrados. Que o Shabat Nachamú e a alegria de Tu be’Av nos consolem, fortaleçam nossos corações e inspirem ações concretas para que todos os cativos retornem ao lar.
Um Tu be’Av de consolo e Shabat Shalom!
Rabina Kelita Cohen
Academia Judaica da CIP