Escute a verdade, de quem quer que a diga
Maimônides, o médico, filósofo e comentarista judeu que viveu no mundo árabe no século XII (que incluía a península Ibérica), foi duramente criticado por suas obras em filosofia, na qual ele procurava estabelecer um diálogo entre a tradição judaica e a filosofia aristotélica. Acusado de heresia por fazer referência a obras e autores fora do universo intelectual judaico, a resposta de Maimônides permanece válida até os dias de hoje: “Shmá ha-emet, me-mi she-omrá”, “escute a verdade, de quem quer que a diga” – ou seja, devemos considerar a validade de um argumento baseado nos seus próprios méritos, não na nossa afinidade com quem o disse.
Na parashá desta semana, o rei moabita Balak (que dá nome à parashá), temeroso pela chegada dos hebreus, contrata um feiticeiro, Bilam, para amaldiçoá-los. Nada muito diferente do conflito estabelecido no primeiro encontro entre o faraó e Moshé, em que os mágicos egípcios foram chamados para confrontar os sinais do poder de Deus exibidos por Moshé (Ex. 7:8-13). O surpreendente, neste caso, é que Bilam – um feiticeiro pagão – chama Deus pelo Seu nome impronunciável (aquele que, quando encontramos na Torá ou no sidur, lemos como “haShem” ou como “Adonai”). Mais que isso, o feiticeiro parece realmente conseguir acessar o Divino, pois se estabelece um diálogo entre Bilam e Deus.
Os comentaristas clássicos ficaram muito incomodados com isso… Segundo Rashi (França, sec. XI), Deus só apareceu a Bilam para enganá-lo; segundo Ibn Ezra (Espanha, sec. XII), a aparição Divina foi por respeito ao povo de Israel. Os sábios do Talmud foram ainda mais críticos em seus comentários sobre Bilam, assegurando que ele não teve um lugar no mundo-vindouro (Bavli Sanhedrin 105a-b).
Quando chegou a hora de Bilam amaldiçoar os Filhos de Israel, Deus colocou as palavras na sua boca, que acabaram sendo bênçãos sobre os israelitas. Uma frase destas bençãos, “Ma tovu ohalêcha, Iaacov, mishkenotêcha, Israel”, “como são boas as tuas tendas, Iaacov, e as tuas moradas, Israel”, se tornou parte da reza que dizemos ao ver ou ao entrar em uma sinagoga e com a qual começamos os serviços religiosos na CIP.
Apesar do desconforto dos rabinos com Bilam, suas palavras foram percebidas como Divinamente inspiradas e incorporadas à nossa tradição. Em um mundo cada vez mais marcado pela dicotomia ideológica, no qual escutar a opinião daqueles com quem discordamos passou a ser um evento raríssimo e no qual nossas posturas frente aos fatos dependem de quem os relata, a parashá desta semana nos convida a considerar a perspectiva de Maimônides, “escute a verdade de quem quer que a diga”. Assim como aconteceu com Bilam, algumas vezes encontraremos a verdade na boca daqueles com quem geralmente debatemos e não nos servirá em nada rejeitar a verdade simplesmente porque não gostamos de quem a expressa.
Que nesse Shabat possamos viver longe dos conflitos, construindo consensos e procurando o positivo nas palavras de todos ao nosso redor.
Shabat Shalom
rabino Rogério Cukierman