“Precisou haver uma shoá  (“holocausto”) para que haja [o Estado de] Israel”, dizem alguns…

“A tragédia, de algum modo, foi compensada”, dizem outros… 

Será?! Sem sermos tão vítimas, não teríamos o direito? 

Este shabat separa, ou conecta, duas datas: Iom HaShoá e Iom HaAtsmaútas experiências mais marcantes dos últimos séculos, senão de toda a história. O dia que lembramos o assim chamado Holocausto, a maior destruição que sofremos, e o Dia da Independência do Estado de Israel, talvez o maior ressurgimento e fortalecimento dos judeus e do judaísmo. Por essa razão, alguns chamam este shabat de shabat tkuma, o shabat do levantamento, do erguimento.

Inúmeras vezes foi assinalada a suposta conexão entre ambos os episódios. Ora do ponto de vista político, ora do ponto de vista teológico. Como se a tragédia fosse necessária para que aconteça a conquista. Como se a conquista pudesse, de algum modo, compensar, explicar, justificar ou substituir a tragédia. Ou, ao menos, acalmar a dor, consolar o dano.

Na lenda mitológica, a fênix ressurge das cinzas como uma nova ave. Não fica claro se é sempre a mesma ave, ou se morre uma ave e surge uma outra no seu lugar. No primeiro caso, a ênfase da lenda estaria no ressurgimento, no fato das cinzas serem suas. No segundo, na novidade, na renovação. Se for a mesma entidade que sofreu e se ergueu, talvez exista consolo. Sendo outra, a perda ficaria irreversível. Todavia, sendo a mesma ave, ainda restam pegadas do acontecido.

Quem vive perto de sobreviventes, inclusive dos que conseguiram ficar mais positivos, pode comprovar como algumas partes deles morreram no horror da Shoá, mesmo tendo sobrevivido. Inclusive descobrimos que partes de nós, segunda geração, estão para sempre marcadas. É possível então alguma cura completa? 

O Midrash conta que as segundas tábuas viajavam na arca sagrada que continha, também, os restos das primeiras tábuas quebradas, indicando que nada se perde totalmente. Tudo fica, de algum modo, em algum lugar. O sofrimento, a memória, os que morreram, e o que eles viveram de bom antes do sofrimento também. Assim funciona a história de um indivíduo, de um povo, de uma sociedade, de uma cultura e da humanidade toda.

O conceito de Teshuvá inclui arrependimento e renovação, mas significa literalmente retorno. Retornamos a nós mesmos para mudar e renovar. A fênix judaica, aparentemente, é sempre uma só. Nela integram-se todas as lágrimas e todas as alegrías, todas as quedas e todos os ressurgimentos, todos os momentos de perda e os de reconquista. Nenhuma conquista apaga as perdas, mas nenhuma perda é total, pois nada some completamente.

Quem lê se perguntará “como?”. A tradição rabinica sugere o princípio: ein tzibur met = a comunidade não morre. Ser em comunidade possibilita a transcendência, ser junto permite participar da eternidade.

Enquanto houver memória, identificação, conexão generacional e estudo, há permanência.

Toda vez que lembramos do que dizia um falecido, do que gostava, do que fez, do que foi importante e do que ficou pendente, ele continua de algum modo. Toda vez que nos identificamos com uma ideia, lemos um texto de alguém, vemos um filme, ouvimos uma música, estendemos os braços da vida e ampliamos a presença. Toda vez que celebramos o shabat conectamos milhares, milhões de pessoas, almas, sonhos, fatigas, esperanças e desejos.

A memória ativa que se renova na subjetividade da mente e da ação é uma volta renovadora (teshuvá), é uma cura (refuá) e é também ressurgimento resiliente (tkumá).

O tempo todo morremos e ressurgimos mas, para isso, precisamos estar e ser em comunidade: estreitar os vínculos, conhecer as pessoas a fundo e incorporá-las a nós, conhecer as tradições e as ideias e integrá-las a nós. Ser em comunidade é ser história, viva, eterna, e não morrer.

Uma sociedade e um país também podem ser uma multidão anônima alienadora ou uma comunidade acolhedora, responsável e geradora de identificação e perpetuação. Também e especialmente nas sombras da pandemia.

Que possamos consegui-lo.

 

Shabat Shalom,

Rabino dr. Ruben Sternschein