Após perambularem pelo deserto por 40 anos desde a saída do Egito, finalmente Moisés e o povo se encontram na fronteira com a terra prometida. É nesse ponto da trajetória, diante de uma situação limítrofe entre a vida e a morte, que Moisés inicia seu discurso de despedida. E os insumos para a sua narrativa derivam sobretudo das suas memórias – as memórias dos fatos e dos afetos.  Às vésperas de serem introduzidos a um novo capítulo da história judaica, as palavras de Moisés – Devarim – enfatizam a importância da memória.

O primeiro grande tema narrado nesse discurso introdutório é a nomeação de líderes de cada tribo. A motivação para a montagem dessa estrutura de poder parte da subjetividade de Moisés. O líder máximo dos israelitas declara: “Não posso carregar o fardo de vocês sozinho” [Devarim 1:9]. “Escolham de cada uma de suas tribos representantes sábios, perspicazes e experientes” [1:13]. E Moisés os instruiu a não serem parciais no julgamento e a pedirem ajuda quando a questão fosse difícil de ser julgada. O princípio da liderança proposta se baseava no reconhecimento de que não somos infalíveis e precisamos nos apoiar uns nos outros naquilo que se fizer difícil de decidir sozinho.

O texto continua com a descrição do episódio dos emissários enviados para o reconhecimento da terra. Moisés conta nesta parashá que o povo veio a ele e pediu que enviasse uma delegação formada por um representante de cada tribo em uma missão de inspeção na terra de Israel (1:20-26). A mesma história é narrada no livro de Bamidbar, quando se supõe que os fatos ocorreram. No entanto, naquela descrição, é Deus quem ordena que sejam enviados 12 inspetores à terra, e não que se tratava de um pedido do povo.

O registro realizado a posteriori dá pistas da plasticidade das memórias de Moisés. Essa aparente contradição nas duas versões do mesmo evento nos lembra que a história não está escrita em pedra e não estamos condenados a um passado sobre o qual não podemos intervir.

Podemos em certa medida remodelar o passado todas as vezes que ressignificamos o vivido. Ao modificar a carga emocional de um acontecimento, conseguimos reescrever a história, possibilitando uma vivência nova das memórias ressignificadas e uma recondução da nossa trajetória futura.

Em Devarim, o grande líder dos israelitas nos deixa aceder à sua vulnerabilidade. Ao passar o bastão da liderança a Josué, Moisés não apenas o recorda dos requisitos para liderar, mas também nos deixa saber que um líder pode sentir medo e precisa ser fortalecido por outros. Ao exortar a que “não tema nem desanime” [1:21; 3:22], Moisés está ao mesmo tempo dizendo que as circunstâncias o farão sentir medo ou se desanimar. E é por isso que conclama também aos demais a que “impregne-o de força”, “encoraje-o” [1:38].

Talvez a posição da liderança de Moisés, um homem que falava com Deus, não tivesse feito o povo perceber a sua humanidade. Não parecia razoável que uma pessoa como Moisés fosse suficientemente vulnerável para precisar da intervenção dos seus liderados perante a divindade. E essa diferença entre a percepção do povo e a expectativa do seu líder fica ainda mais clara no midrash:

Rabi Shmuel bar Yitzḥak disse: Quando se aproxima a hora da morte de Moisés, e eles [os israelitas] não pediram misericórdia em seu nome para que ele pudesse entrar na terra, ele os reuniu e começou a repreendê-los. [Moshe] lhes disse: “Uma pessoa redimiu a seiscentos mil pelo pecado do bezerro de ouro; será que seiscentos mil não poderiam redimir uma pessoa? [Devarim Rabá 7:10]

Poder olhar para o texto com essa distância temporal nos permite vislumbrar a fragilidade e a humanidade de Moisés – coisa que não foi possível aos seus contemporâneos. Presentes nas falas e nas atitudes mais corriqueiras, as contradições revelam uma construção constitutiva que nos qualifica como seres falantes e, portanto, vulneráveis; e não necessariamente apontam para um conteúdo cuja credibilidade deva ser questionada. Esses são os conteúdos preferenciais de profissionais da psicologia, pois trazem à tona a essência de quem somos: indivíduos que não se estagnaram em seu percurso de desenvolvimento ao longo de todo o ciclo da vida.

Ao abraçarmos as contradições com menos julgamentos, nos permitimos experimentar um movimento alternativo à tradição aristotélica do pensamento ocidental, que busca superar as contradições e excluí-las do campo da verdade. Nessa condição, poderemos encontrar nas contradições, marcas de uma subjetividade com a qual possamos nos identificar e nos reconhecer nela.

Que possamos reconhecer nos textos e nas pessoas a humanidade que existe nas contradições, e nela, reconheçamos a nossa própria humanidade. Afinal, “não há quem fortaleça, senão quem é fortalecido” [Midrash Lecach Tov, Devarim 1:38:1].

 

Shabat Shalom!

Rabina Kelita Cohen