Cada profissão tem seu conjunto de expressões técnicas que ajudam a definir quem detém aquele conhecimento profissional e quem não. Algumas vezes, por trás de expressões complicadas estão conceitos igualmente complexos — por não ser médico, eu nunca consegui entender direito o que é acalasia ou disdiadococinesia; outras vezes, no entanto, essas expressões técnicas são muito mais complicadas do que os conceitos que elas representam. Tomemos um exemplo da economia: por trás da nebulosa expressão “utilidade marginal decrescente” se esconde o conhecido fenômeno que, quanto mais temos de uma coisa, menos prazer tiramos de ganhar uma nova unidade da mesma coisa. É um conceito sabido que se aplica a vários aspectos das nossas vidas: imagine a alegria de ganhar o novo biquíni que você tanto quer; agora, imagine ganhar o 21º biquini do mesmo modelo! Imagine como, depois de ficar tanto tempo sem poder viajar, anseia por conhecer lugares longínquos e misteriosos; agora, imagine a vontade de dormir na sua própria cama depois de ficar uma longa temporada fora de casa.

O mesmo conceito da “utilidade marginal decrescente” pode ser aplicado ao inverso, significando que nos acostumamos também com coisas ruins e passamos a não nos importarmos tanto quando elas acontecem. Você se lembra do que aconteceu quando chegamos à terrível marca de dez mil mortos por Covid-19 no Brasil? Era postagem no Facebook, comentário no Jornal Nacional e inúmeras colunas de articulistas dos jornais. Agora tente se lembrar do que aconteceu quando o número de mortos passou de 580 mil para 590 mil… não aconteceu nada. Nem uma manchete, nem um comentário… Nos acostumamos com o fato de centenas de milhares de pessoas morrerem por essa terrível doença e não nos chocamos mais quando os números confirmam a realidade com a qual já estamos acostumados.

O mesmo vale para outros tipos de mortes. Em 2020, foram assassinadas no Brasil 50.033 pessoas [1], praticamente um a cada 10 minutos. Toda hora, todo dia. Com taxas assim, não é de se espantar que tenhamos perdido a sensibilidade para cada novo assassinato que acontece.

Na parashá desta semana, Bereshit, temos o primeiro assassinato da história [2]. Caim, enciumado pela atenção que Deus havia dado a seu irmão, Abel, o assassina em um ataque de raiva. Quando Deus lhe pergunta: “Onde está Abel, teu irmão?”, sua resposta deve nos servir de alerta contra insensibilidade  gerada pela sequência de notícias ruins: “Eu não sei. [Por acaso] eu sou o guardião do meu irmão?!”

Em que situações nos consideramos guardiões dos nossos irmãos? Quando sentimos que somos todos co-responsáveis uns pelos outros? A construção de uma sociedade inclusiva e justa parece depender de sentimentos assim, que garantam que o bem estar de todos seja uma preocupação coletiva. Nas sociedades urbanas e despersonalizadas em que vivemos, no entanto, os laços sociais que garantiriam esse tipo de conduta estão tão fragilizados que perdemos a capacidade de nos entristecer a cada dez minutos por mais um assassinato. 

E, assim, sem que ninguém se importe, viramos estatística, viramos números, e nos adequamos à regra do “rendimento marginal decrescente”.

Que neste novo ciclo de leitura da Torá possamos quebrar esse ciclo vicioso. Que possamos nos importar sem ter nossos corações esfacelados pela dor. Que nos consideremos guardiões uns dos outros e nos comprometamos a criar a sociedade justa com a qual sonhamos.

 

Shabat Shalom,

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] https://bit.ly/2WtNj83

[2] Gen. 4:1-16