Durante boa parte da História e sobretudo na contemporaneidade, o ser humano parece ter se tornado todo-poderoso. Não apenas dominamos o planeta já há milênios, também desenvolvemos tecnologias que nos permitiram fazer o que antes era absolutamente impossível para nós.
Voar, por exemplo, não é da natureza dos mamíferos em geral (exceto os morcegos) e um cão que queira voar atrás de uma pomba simplesmente não poderá fazê-lo. Já o ser humano, ao desejar voar, estava apto para CRIAR uma máquina voadora.
Uma ave NÃO ESCOLHE voar ou não voar. É simplesmente de sua natureza. E, por mais que vejamos os pombos nas grandes cidades se comportando como pedestres, esses animais não têm a capacidade de inventar um veículo de transporte como o automóvel, ou mesmo um avião para descansar suas asas.
Uma aranha pode se pendurar em sua teia, forte o suficiente para sustentar a si mesma sem quebrar. Nós não conseguimos produzir uma teia, mas podemos criar cabos de aço nos quais penduramos elevadores e, graças a eles, podemos “escalar” um arranha-céu em poucos segundos.
Inúmeras invenções humanas foram inspiradas nos animais e, graças à capacidade intelectual humana e nossas habilidades construtoras, nós podemos criar artefatos que nos permitem vencer nossos próprios obstáculos naturais. Ao contrário de outros animais, o Homo sapiens pode IR ALÉM da sua capacidade natural.
Não tínhamos grandes pelagens para nos proteger do frio? Desenvolvemos casacos e demais abrigos. Não tínhamos pele dura para nos defender de outros animais ou de ataques de outras tribos? Criamos armaduras. Sem garras, criamos ferramentas de caça.
Pouco a pouco, aquele ser que não tinha qualquer probabilidade de sobreviver a outras espécies, aquele que poderia se tornar presa fácil por sua natureza frágil (em comparação a outros animais em geral, e a outros primatas em especial), tornou-se aquela espécie que conquistou o mundo e até já viajou para fora dele (“cresçam, multipliquem-se, encham a Terra e a dominem” – Gn 1:28).
E não paramos ali. Aprendemos a ampliar nossa capacidade de visão através de telescópios, a amplificar nossas vozes, a ouvir mensagens e visualizar imagens enviadas do outro lado do planeta, prever eclipses, terremotos e o comportamento do clima. Desenvolvemos ferramentas para eternizar a imagem de um momento em uma folha de papel fotográfico, em microchips ou em alguma nuvem.
Ao contrário de quaisquer outros animais, nós descobrimos curas para inúmeras de nossas doenças e meios de nos prevenir de outras tantas, podemos reciclar nosso lixo, ouvir músicas compostas há mais de 400 anos, isso tudo só para citarmos algumas das nossas maravilhas, que às vezes nos parecem tão óbvias.
A capacidade intelectual do ser humano impressiona porque, nem de longe, se aparenta ao raciocínio existente em outras espécies. Nossas habilidades construtoras, criadoras e criativas nos permitem vencer todas as nossas limitações naturais. E aquelas que não podemos vencer, ora, AINDA não podemos vencê-las.
É fácil, assim, esquecermos de Deus. E essa era a preocupação fundamental de Moshé Rabênu na parashá dessa semana, Ékev. Moshé se preocupa que venhamos a nos esquecer do Eterno e nos apoiemos unicamente em nós mesmos. Diz a Torá: “Talvez você venha a dizer em seu coração: ‘Minha força e o poder de minhas mãos me conseguiram todos estes bens!’ – antes de tudo você deve se lembrar do Eterno, pois é Ele quem lhe dá a força para conseguir esses bens!” (Dt 8:17-18), pois “ao Eterno pertencem os céus e os céus dos céus, a terra e tudo o que ela contém” (Dt 10:14).
Na continuação, a parashá relembra o maná, história que nos ensina a confiar em Deus, mas nunca ficar de braços cruzados esperando que tudo caia do céu. O maná vinha do alto, mas o ser humano deveria sair todos os dias para colhê-lo.
O maná nos recorda de que nada vem de mão beijada e que nosso esforço é necessário para que as coisas aconteçam. Mas ao mesmo tempo ele nos recorda que confiarmos apenas em nosso esforço não é suficiente pois, ao esquecermos de Deus, podemos nos tornar arrogantes. A arrogância leva à prepotência e a prepotência nos leva a desprezar nossos semelhantes, profanando, assim, o Nome Sagrado – pois todos fomos criados à imagem divina.
A tradição judaica nos ensina a cobrir a cabeça como sinal de humildade. Mulheres e homens cobrimos a cabeça de diferentes formas durante nossa História como um lembrete constante de que existe algo acima de nós, de que a Divindade está ali, além de nossas fantásticas capacidades humanas e das nossas possibilidades inimagináveis, mas finitas.
Valorizemos cada uma de nossas conquistas e de nossos méritos, mas sempre conscientes de que não foi apenas por nós mesmos que obtivemos sucesso. Reconheçamos e agradeçamos ao Divino, a cada instante, por nos ter abençoado lá no início da Criação, partilhando conosco da Sua divina capacidade Criadora-Criativa e transformadora.
Shabat shalom
Theo Hotz