Licença para mentir?

A tradição judaica é conhecida por ter muitas regras, entre elas,
os dez mandamentos, os quais incluem a regra de “não mentir”.
Todavia, os patriarcas Abraham e Itschak mentem sobre suas
esposas dizendo que são suas irmãs. O patriarca Iaakov mente
sobre sua identidade e diz a seu próprio pai cego que ele é seu
irmão. Até o próprio Deus, ao reportar para Abraham sobre o
riso de Sara diante de sua possível gravidez aos 90 anos diz que
ela riu somente de sua própria velhice e não de seu marido.
Também o próprio Deus manda o profeta Samuel mentir quando
se dirige a coroar David, dizendo que vá a cuidar de ovelhas.
Na parashá da semana, os irmãos de Iossef contam uma mentira
dizendo que o patriarca Iaakov, o pai deles, mandou ele perdoar
os irmãos por tê-lo vendido como escravo. Iossef também altera
a verdade ao dizer que não foram eles que o mandaram ao Egito
se não a Providência Divina, para salvar eles e outros povos.
Será que a tradição judaica prega a verdade e a mentira ao
mesmo tempo?
Na literatura talmúdica posterior à bíblia, se diz que uma noiva
deve ser sempre dita de bonita e bondosa, independentemente
de como se vir. Essa mesma literatura estabelece que o mundo
se sustenta sobre três pilares: a justiça, a verdade e a paz.
Os comentaristas dirão que os casos acima são quase todos
casos de alterações da verdade e não de mentiras completas,
pois as esposas eram meio irmãs, Iaakov tinha comprado o
direito de ser seu irmão primogênito, Sara tinha rido também de
si, e Samuel podia cuidar também das ovelhas no caminho à
coroação do David. A justificativa principal, porém, seria que se
trata, em todos os casos, do confronto entre a verdade e outros
valores. A vida, a paz, a benção. Não se trata de mentiras banais,

e sim, de conflitos entre valores bons excludentes. A verdade
completa arriscaria a vida, ou a paz, por exemplo.
Alguns perguntarão se será possível a vida, a paz e a Benção sem
verdade. Outros dirão: será possível a vida, a paz e a benção, a
justiça apenas com uma verdade completa e absoluta?
O Talmud é uma tradição especializada em mostrar a diversidade
de verdades possíveis, dentro de um texto, de uma história, de
um Deus, de uma pessoa.
A Torá insiste em não se auto-enganar, em ser sincero e
autêntico ao menos com si próprio, com o divino mais interno.
É possível que tanto José como seus irmãos tenham cumprido
nesta narrativa com este conceito. Todos sabiam tudo o
acontecido. A verdade das intenções passadas, dos medos atuais
e das incertezas futuras. E resolveram ler a realidade do modo
mais construtivo e pacificador. Se contar a si próprios que a
história vivida, com suas dificuldades e misérias, era necessária
para que haja perdão, reconciliação, sustento e crescimento. Os
rabinos dizem sobre a beleza da noiva que também ela é relativa
e sempre pode existir de algum modo. Eles até atribuem a deus
verdades tensas repletas de aspectos controversos.
Que possamos também nos enfrentar os desafios de conflitos
dos valores, escolhendo os mais nobres e sustentáveis de uma
vida digna, repleta de sentido e feliz.

Rabino Dr. Ruben Sternschein