Após inúmeros dias no alto do Monte Sinai, e sem saber se Moshé voltaria ou não, o povo de Israel esculpiu a imagem de um bezerro de ouro, e o cultuando como divindade. Deus então diz a Moshé: “Vai, desce. Porque se corrompeu o SEU POVO que VOCÊ tirou do Egito. (…) Agora deixe-me, para que meu furor se acenda contra o povo e o consuma. E Eu farei de você [Moshé] uma grande nação” (Ex 32:7, 10).

Moshé não se deixa levar pela tentadora proposta divina. Afinal, Deus também havia prometido fazer de Avraham, Itzhak e Yaacóv uma grande nação, e agora ameaçava destruí-los. Em outras palavras, Moshé não tinha qualquer garantia de um belo dia a Divindade não faria o mesmo a seus descendentes.

Não quer dizer que Moshé não confiasse em Deus, porém, se o Divino realmente destruísse os descendentes de Avraham, Itzhak e Yaacóv, simplesmente esquecendo-se de Sua promessa, como Moisés poderia então continuar acreditando no Eterno?

Corajosamente, nosso mestre relembra a Divindade de que não foi sua a ideia de libertar os hebreus do Egito: “Eterno, por que Seu furor se acende contra o SEU povo, que VOCÊ tirou do Egito com grande poder e mão forte?” (Ex 32:11).

Em seguida, como um assessor de imagem, questiona retoricamente o comportamento divino: “O que os Egípcios vão dizer? Que VOCÊ os tirou do Egito para lhes fazer o mal? Para matá-los sobre as montanhas e destruí-los da face da Terra?”. E desafia o Eterno, dizendo: “Desista de Sua fúria e Se arrependa do mal que deseja fazer a SEU povo” (Ex 32:12).

Humildemente, Moshé Rabênu recusa a proposta divina e defende o povo, lembrando o Eterno da aliança entre Ele e a descendência de Avraham: “Lembre-Se de Avraham, de Itzhak e de Israel, a quem Você jurou, dizendo: ‘Multiplicarei a sua descendência como as estrelas no céu’. Então o Eterno Se arrependeu do mal que dissera que que faria a Seu povo” (Ex 32:13-14).

Ao fazer uma imagem para o Divino, sem saber, o povo desperta em Deus uma de Suas qualidades mais temíveis. Esse caráter destruidor do Divino estava disposto a passar por cima até mesmo de Sua qualidade de fidelidade a Suas promessas! É possível aprender daqui como a obsessão pela imagem perfeita, ou pela não-imagem, nesse caso, pode acabar sendo destrutiva. E talvez daí a preocupação constante da Torá com relação às imagens.

Ao mesmo tempo, é ao apelar para uma certa “vaidade divina” que Moshé consegue apaziguar a Divindade. Pense na Sua autoimagem: “o que os outros pensarão de Você e contarão sobre Você, Deus?”.

Num mundo em que nos deixamos dominar pela tecnologia e pelos dispositivos eletrônicos, em que temos o nosso eu substituído por aquilo que parecemos ter, pela nossa imagem projetada nas redes sociais, a advertência contra a confecção de imagens e adoração de ídolos continua relevante.

Numa época complexa, em que “a imagem é tudo”, todos nós tivemos em maior ou menor escala nosso narcisismo amplificado. A Torá nos adverte quanto a isso porque, assim como nosso eu – substituído por uma imagem irreal de nós mesmos – acaba nos desconectando da realidade e nos torna insensíveis ao mundo real, do mesmo modo nos acabamos nos desligando do Divino ao substituí-Lo por uma religiosidade fria, unicamente ritual, que pode nos tornar escravos de uma lista de ditames, de exigências e proibições impostas por meia dúzia de pessoas, e que são alheias ao espírito da própria Torá.

Um judaísmo crítico e desafiador (desafiador como Moshé!), que seja fruto do nosso estudo e do nosso questionamento, é o que nos levará a uma religiosidade relevante e significativa, que enxergue no rito e na prática um meio de expressão da fé, e não um fim em si mesmo. Que sejam uma das formas de se conectar ao Divino, e que nunca sejam transformadas em modernos bezerros de ouro.

 

Shabat shalom,

Rabino Theo Hotz