A Parashá da semana, Reê, é rica na diversidade de temas que aborda. Alguns temas de forma mais elaborada, como a celebração dos chaguim, as festas judaicas, e outros temas de maneira mais sucinta. A ideia de que o abate de animais casher tem uma preocupação especial no cuidado com os animais é amplamente conhecida. Mas o que diz a Torá sobre o método de abate casher? Como a prática judaica se desenvolveu ao longo dos anos para que essa ideia seja tão conhecida? Como podemos encontrar uma origem divina em tudo isso?

Salvo a exceção encontrada na parashá dessa semana, o abate de animais na Torá é centrado no procedimento ritual ligado as oferendas trazidas ao templo. Justamente por isso, há uma necessidade da Torá de explicar que existe uma possibilidade de comer carne animal fora do ritual ancestral:

“Apenas quando desejar do fundo da sua alma, é permitido abater e comer carne animal de acordo com a benção divina.” (Devarim 12:15)

A permissão de comer carne na tradição judaica não é algo dado ou leviano. É uma permissão quase que em caráter de exceção. A dieta judaica tradicional parte da premissa que carne animal é algo especial e que não deve ser consumida de maneira rotineira, há uma demanda por uma decisão intencional seguida por uma série de procedimentos técnicos que, entre outras coisas, visa limitar o seu consumo desenfreado.

Adam e Chavá, os primeiros seres humanos descritos pela Torá, não tinham a permissão de comer nada além dos produtos do campo. Apenas após o dilúvio na época de Noach, é registrado na Torá a permissão divina para o consumo de carne animal. (Bereshit 9:1-4)

O Aruch HaShulchan, obra literária sobre a prática judaica publicada em 1884 traça as origens das leis e costumes até sua fonte. O autor, Rabino Yechiel Epstein, explica (Ioreh De’á 1:2):

“Todas as leis de Shechita (método de abate casher) foram ditas oralmente a Moshé no Monte Sinai, (…) conforme está escrito na Torá “vocês poderão abater qualquer gado ou ovelha que Deus lhes der, conforme eu te ordenei” (Devarim 12.21)”. (…) Este versículo ensina que Moshé foi previamente ordenado sobre as leis de abate, embora elas não estejam escritas explicitamente na Torá.”

Sim, isso é tudo que a Torá diz sobre o método de abate de animais. Mas como chegamos nas leis e costumes existentes hoje a partir desse único versículo?

O tratado do Talmud chamado Chulin discute todas essas questões em detalhes. Já na era talmúdica, entre os anos 200 e 600 da era comum, tínhamos práticas muito similares as que praticamos hoje, com alguns desenvolvimentos tecnológicos que acompanharam as novas descobertas da ciência. Por exemplo, no ano 200 da era comum, se falava que qualquer objeto cortante que não esteja conectado com a sua origem, pode ser usado para fazer o abate. Porém com o desenvolvimento tecnológico, hoje, apenas o metal utilizado para fazer as facas próprias para o abate é permitido. Essa mudança se dá ao entendimento que o corte é significativamente melhor dessa maneira, trazendo menos sofrimento aos animais, um valor central da tradição judaica.

E como sabemos que as práticas desenvolvidas ao longo dos séculos pelos estudiosos do tema estão conectadas com o que foi ensinado a Moshé no Sinai?

Segundo o rabino espanhol Iaacóv ben Asher (1269-1343), mais conhecido como Tur, a numerologia judaica (guemátria) tem uma explicação irrefutável. A expressão כַּאֲשֶׁר צִוִיתִיךָ (ca’asher tziviticha – lit. conforme eu te ordenei) encontrada na parashá dessa semana, tem o valor numérico de 1047. Uma das expressões centrais nas leis do abate casher, ensina sobre a necessidade de cortar um ou dois órgãos (esôfago e traqueia) no abate de aves e mamíferos. A expressão רֹב אֶחָד בָּעוֹף וְרֹב שְׁנַיִם בַּבְּהֵמָה (rov echad baóf verov shnaim babehemá – lit. a maioria de um nas aves e a maioria de dois nos animais) também tem o valor numérico de 1047. O valor numérico atribuído a uma expressão que explica o processo do abete casher é exatamente o mesmo valor dado a expressão da Torá que nos ensina que o processo do abate casher foi ordenado a Moshé no Sinai. Esse fenômeno é entendido na tradição judaica como um símbolo da divindade por trás das decisões humanas. Não pode ser mera coincidência.

Que tenhamos a sabedoria de encontrar o divino dentro dos processos humanos, elevando a santidade da vida e fortalecendo os valores judaicos.

 

Shabat Shalom,

Rav Natan Freller