A parashá desta semana começa com uma reivindicação popular que apresenta um certo paralelismo com as recentes manifestações que têm tomado as ruas do país há meses. O levante liderado por Côrach, junto com Datan e Aviram, consegue a adesão de 250 representantes dos israelitas. Não parece se tratar do movimento de um insurgente solitário, buscando um golpe de estado. A propósito, o próprio termo “estado” é controverso para ser atribuído ao modelo de sociedade que se constituía na deambulação pelo deserto, com uma população recém liberta da escravidão no Egito. 

Nos comentários de Gunther Plaut, a narrativa bíblica aparentemente funde duas tradições. A revolta de Côrach se dirige contra a sucessão sacerdotal exclusiva a Aarão e seus descendentes, sendo ele próprio um levita. A segunda, liderada por Datan e Aviram, trataria de uma revolta civil, questionando a liderança de Moisés, em desatenção ao direito da primogenitura que lhes caberia como descendentes de Ruben. 

Vale notar que a insatisfação estava instalada entre as massas populares, que se fizeram representar nos duzentos e cinquenta chefes de comunidades, eleitos pela assembleia, tidos como pessoas idôneas e de boa reputação.

Que argumentos poderiam dar sustentação à manifestação pela defesa da igualdade de oportunidades?

 

כׇל־הָֽעֵדָה֙ כֻּלָּ֣ם קְדֹשִׁ֔ים וּבְתוֹכָ֖ם יְהֹוָ֑ה

“Toda a comunidade é santa, todos eles, e o Eterno está entre eles”. (Nm. 16:3)

 

Sua reivindicação não parecia vazia. Havia uma afirmação divina que poderia dar-lhes suporte. A santidade estava na comunidade e a presença divina estava dentro dela ou entre eles, como expressa Deus: 

 

וְעָ֥שׂוּ לִ֖י מִקְדָּ֑שׁ וְשָׁכַנְתִּ֖י בְּתוֹכָֽם׃

“Eles farão para mim um Santuário e eu habitarei entre eles” (Shemot 25:8)

 

Frente a essa nova chapa que se apresenta reivindicando oportunidade de contato com Deus, Moisés convoca eleições: 

 

וְאֵ֛ת אֲשֶׁ֥ר יִבְחַר־בּ֖וֹ יַקְרִ֥יב אֵלָֽיו

“…àquele a quem [Deus] escolher, será concedido acesso direto”. (Nm. 16:5)

 

As primeiras eleições no antigo Israel aconteceram sem a participação popular. Afinal, era uma comunidade recém-nascida, e talvez lhe faltasse ainda maturidade para fazer escolhas. No entanto, se a impossibilidade de fazer escolhas derivava da falta de maturidade, também a imputabilidade penal não deveria ter lugar. Infelizmente não é esse o desfecho da narrativa bíblica. 

Muitas culturas tribais antigas padeciam dessa dificuldade de conviver com as diferenças. Era “eu OU o outro”, vencedores e vencidos, não havendo lugar para “eu E o outro”. A aniquilação para os insurgentes tendia a ser uma medida exemplar para evitar novos levantes. 

Um sistema de governo democrático era algo impensável naquele momento. A própria concepção moderna de estado não coincide com as estruturas de governo da época. A partir da compreensão que temos hoje de sistemas de governo, o antigo sistema de Israel pode ser caracterizado como uma teocracia com elementos de autocracia. O líder é a figura escolhida por Deus, e não pelo povo; e quem divergir da opinião do líder está na verdade divergindo do próprio Deus.

Na porção da haftará que acompanha a parashá desta semana, o profeta Samuel diz ao povo: “Aquele que escolheu Moisés e Aarão e que tirou seus ancestrais do Egito…” (I Samuel 12:6); “…embora o Eterno, seu Deus, seja seu verdadeiro rei” (v. 12).

O outro lado da moeda, é que também Côrach e seu grupo eram parte da mesma cultura da exclusividade do poder, onde apenas alguns privilegiados deveriam ter voz.

Entendendo que se tratava de uma sociedade oriental antiga que se rege por regras culturais diferentes às contemporâneas, e deixando um pouco de lado as formas apoteóticas e mágicas da narrativa (a terra que se abre, traga aqueles que se encontram sobre a superfície em forma seletiva e volta a se fechar; uma vara que floresce em detrimento das demais, como forma de vindicação do seu dono), o que podemos aprender dessa história bíblica que nos ajuda a enfrentar melhor os problemas relacionais dos nossos dias?

O filósofo israelense Micah Goodman, em seu curso “O último discurso de Moisés”, fala sobre a necessidade da separação estado e religião como a forma de se ter uma democracia liberal saudável. A teocracia que existia desde o Sinai parece se perpetuar até por volta do séc. XI AEC, com Samuel. Gunther Plaut comenta que Samuel se sentiu obrigado a reforçar seu papel como representante de Deus. Nesse sistema teocrático, as decisões políticas, jurídicas e religiosas eram baseadas na vontade e na orientação de Deus, conforme reveladas a Moisés e transmitidas ao povo. Por isso mesmo, Samuel não apenas era um líder religioso, mas também é descrito como líder militar e juiz.

No tempo do profeta Samuel, rudimentos da expressão da vontade popular na escolha do líder começam a despontar, ainda não constituindo-se um sistema democrático, mas uma monarquia, com um rei escolhido pelo povo. 

“Então, eis o rei que vocês escolheram, que vocês pediram; agora o Eterno lhes deu um rei” (Samuel I 12:13).

A evolução da concepção de um estado protegido da religião só aparecerá no texto da Torá mais adiante, no livro de Deuteronômio (Devarim), dando sustentação à reforma religiosa promovida no reino de Judá pelo rei Josias.

Não por casualidade, a ideia de um sistema hierárquico baseado em castas deixou de ser uma parte central da tradição judaica contemporânea. Especialmente após a destruição do Templo em Jerusalém em 70 EC, as funções dos cohanim e dos leviim perderam grande parte de sua relevância prática. A dispersão dos judeus pelo mundo e a ausência de um Templo centralizado levaram a mudanças significativas na estrutura religiosa e social.

Na atualidade, o voto em Israel é um direito de todo cidadão, e por ser um sistema parlamentarista, diferentes setores da sociedade podem se fazer representar na Knesset – o centro da tomada de decisões. No entanto, depois de Israel percorrer por diferentes sistemas de governo ao longo de sua história, a democracia israelense se vê ameaçada. 

O crescente nacionalismo associado ao radicalismo religioso de certos grupos de poder que participam hoje da coalizão governamental tem se expressado de maneira intolerante com setores da própria sociedade israelense por sua origem étnica ou religiosa. Tal cenário põe em risco a diversidade, a coexistência pacífica e a igualdade de todos os cidadãos. O que se vê é um retrocesso histórico a tempos primitivos nos quais religião e estado se misturavam. Os manifestantes que tomaram as ruas do país argumentam que uma democracia saudável deve ser inclusiva e garantir os direitos de todas as comunidades.

O que se pode notar é que tanto a sociedade do antigo Israel como a sociedade israelense contemporânea são constituídas por pessoas engajadas politicamente e que questões de liderança, autoridade, igualdade de oportunidades e justiça sempre foram temas presentes naquelas latitudes. Apesar do abismo cultural entre o passado e o presente, as histórias bíblicas podem nos fornecer uma base para reflexões éticas e morais que nos ajudem a interpretar a realidade e atuar com maturidade, sem ter que recorrer ao silenciamento das vozes divergentes, dissidentes e diferentes.

 

Shabat Shalom!

Kelita Cohen