Nassó é uma parashá extensa, que trata de diversos assuntos. Entre eles, vemos a repetição do mandamento de não enganar o próximo, usando falsamente o sagrado nome divino.

Há poucas semanas, essa mesma lei aparecia na parashá Vaicrá, então por que razão a Torá a repete? Nossos sábios explicam que em Vaicrá a lei trata do delito de engano e engodo em geral, enquanto em Nassó, a lei seria uma proibição contra enganar, roubar, e cometer estelionato contra o “guêr”.

Na nossa tradição, a palavra “guêr” tem dois significados, podendo se referir ao estrangeiro que vivia junto do povo judeu na terra de Israel, mas que não necessariamente se naturalizava ou se tornava parte do povo, ou pode-se se referir ao estrangeiro que sim decidiu se tornar parte do povo judeu, integrando-se totalmente aos costumes e leis daquele povo e de sua terra, “naturalizando-se” como israelita.

O segundo significado foi ampliado durante o período talmúdico, deixando de significar apenas a “naturalização civil” do estrangeiro, para indicar também a conversão ao judaísmo, abarcando as pessoas que, após conhecer a tradição, a fé e a religião judaicas, decidem se juntar ao povo judeu, integrando-se ao destino espiritual judaico, convertendo-se ao judaísmo, abraçando a aliança de Avraham.

Ou seja, a Torá repete a proibição de cometer fraudes utilizando o nome do Eterno para deixar claro que essa transgressão não podia ser cometida contra ninguém, fosse contra o israelita nato, fosse contra o estrangeiro que vivesse na pátria judaica, fosse aquele guêr que, por própria opção, tornou-se judeu – aquele que, por não necessariamente possuir laços familiares com outros judeus, deve ter sua posição de guêr protegida pela Lei Judaica.

O Eterno protege os guerím” (Salmo 146:9). Nos midrashim sobre os salmos, nossos sábios explicam sobre o amor de Deus para com o guêr:

Um rei possuía um rebanho de cabras e ovelhas que todos os dias saía para pastar no campo, e à tarde voltava para seu curral. Certa vez, um cervo se misturou ao rebanho, pastou com as ovelhas e cabras o dia todo, retornando com elas ao curral.

O fato se repetiu por outros dias e o rei foi se afeiçoando ao cervo e ordenou a seus pastores para que cuidassem daquele cervo, verificassem se havia comido direitinho, se havia bebido água e garantissem que nada lhe faltasse.

Um de seus pastores perguntou ao rei: ‘Majestade, o senhor tem inúmeras ovelhas, cordeiros, bodes e cabras, e nunca nos ordenou que cuidássemos deles tão de perto. Por que isso agora, com relação a esse cervo?’

Respondeu-lhe o Rei: ‘O rebanho sabe exatamente onde está o melhor pasto, sabe exatamente como pastar, onde está a água, pois essa é a sua natureza. Já o cervo é naturalmente selvagem e não é de sua natureza pastar e estar junto de nós. Por ter escolhido viver entre o rebanho, por ter deixado seu habitat natural e ter se juntado a nós, é nosso dever garantir seu bem’.

Assim disse o Deus, segue o midrash: ‘Um grande bem eu devo ao guêr, que deixou sua família e a casa de seu pai para se juntar a mim. E por isso Eu ordenei a Israel tantas leis referentes ao guêr’ (Dt 10:19, Ex 22:20, Lv 19:33-34, entre outras)”.

Na parashá Kedoshím a Torá nos ordenou a amar nosso próximo como a nós mesmos (Lv 19:18). No mesmo capítulo, poucos versículos depois, lemos: “Amarás ao guêr como a ti mesmo, pois estrangeiro foste na terra do Egito – Eu Sou o Eterno, teu Deus”. No seu íntimo mais profundo, o guêr carrega exatamente a essência de todo o povo judeu, que também foi guêr (estrangeiro) na terra do Egito, e que, assim como Avraham Avínu, também deixou sua casa e seus parentes para abraçar a aliança com a Divindade.

Shabat shalom,

Rabino Theo Hotz