Faz uns vinte anos que eu comecei a colecionar hagadot de Pêssach. Começou pequeno, eu comprei minha primeira hagadá porque ia fazer um curso sobre seu texto e me encantei com as possibilidades de leituras contemporâneas desse texto milenar. Com o passar dos anos, fui descobrindo abordagens cada vez mais inovadoras e criativas para dar atualidade de relevância ao seder de Pêssach, um dos rituais mais observados nas famílias judaicas, mesmo entre aquelas que se apressam em se auto-definir como “não-religiosas”. Na minha coleção, tenho hagadot hippies, vegetarianas, que tratam da questão dos refugiados contemporâneos e da escravidão moderna, textos que abordam questões de violência doméstica e a reprodução de uma hagadá histórica, preparada por sobreviventes da Shoá.
Na parashá desta semana, Vaerá, Moshé e Aharon se encontram com o faraó do Egito e exigem a libertação dos hebreus. Frente à recusa, Deus castiga o Egito uma vez, e uma segunda, uma terceira. Até que, ao final do décimo castigo, o faraó se convença a libertar os hebreus. Em hebraico, esses castigos são chamados “macot”, “golpes” ou “agressões”, foram traduzidos para outros idiomas como “pragas”. Em muitos dos textos alternativos que eu tenho na minha coleção há uma busca pela recontextualização desses dez golpes que afligiram o Egito e que, ao final, convenceram o faraó a libertar os hebreus — novas listas das “dez pragas contemporâneas” que, invariavelmente, incluem a poluição, o preconceito de gênero e a LGBT-fobia, nossos vícios às telas, o câncer e outras doenças modernas e o antissemitismo. Nesse contexto, faria sentido adicionar a Covid-19 a essa lista e chamá-la de mais uma praga dos nossos tempos.
Eu argumento, no entanto, que essas listas de pragas contemporâneas contêm uma profunda falha conceitual: seus itens representam, de fato, terríveis problemas da nossa época, para os quais devemos buscar solução com urgência. Os dez golpes que afligiram o Egito, no entanto, não tinham essa característica! A diferença entre “pragas” e “golpes” é significativa; apesar de todo o sofrimento que trouxeram ao Egito, os golpes sobre os quais lemos em nossa parashá tinham um objetivo distinto e muito claro: convencer o faraó a libertar os escravos hebreus. Eram, portanto, ferramentas de pressão e de negociação, não instrumentos de tortura cujo objetivo fosse o de causar dor. Ao final do décimo (e mais potente) golpe, o faraó finalmente concordou com a libertação dos hebreus — dessa forma, a sequência de golpes atingiu o seu objetivo. Qual objetivo podemos encontrar nas chamadas “pragas contemporâneas”? Que bem maior elas buscam atingir?
Os golpes sobre o Egito deveriam ser comparados a greves ou a manifestações de rua: o desconforto que elas causam não é o seu objetivo final, mas a forma de pressionar para ter suas reivindicações atendidas. A legislação brasileira busca regulamentar essas manifestações para que seus direitos legítimos de expressão e de luta não gerem mais dano que ganhos — uma equação que, muitas vezes, depende de que lado estamos em determinada questão. No exemplo da Torá, enquanto nós celebramos a libertação dos hebreus, eu imagino que o ponto de vista egípcio coloque muito mais ênfase no aspecto devastador dos dez golpes. Até onde podemos ir na defesa dos nossos pontos de vista?
Na semana passada, tivemos um exemplo extremo de teste desses limites quando o Congresso americano foi invadido por grupos que pretendiam impedir, pela força, a validação dos resultados das eleições para presidente. Como um verdadeiro golpe, usaram do medo e da força da multidão para pressionar e tentar impor seu ponto de vista. Também no Brasil, temos assistido no passado recente grupos ameaçarem invadir o Congresso ou o Supremo Tribunal Federal na tentativa de impor seus pontos de vista. Essas atitudes, ao fragilizarem nosso sistema democrático, não só se estabelecem como pragas, um mal que não traz benefício algum à sociedade, mas também como tentativas de golpe, em um sentido muito diferente da palavra.
Que possamos aprender com os erros do nosso tempo, buscando solução para os problemas que afligem nossa sociedade, sem tentar impor nosso ponto de vista pelo uso do medo e da força.
Shabat Shalom!
Rabino Rogério Cukierman