וַיִּהְיוּ חַיֵּי שָׂרָה מֵאָה שָׁנָה וְעֶשְׂרִים שָׁנָה וְשֶׁבַע שָׁנִים שְׁנֵי חַיֵּי שָׂרָה׃
“E foram as vidas de Sará: 100 anos, e 20 anos, e 7 anos; anos das vidas de Sará.” [Gen. 23:1]
Rashi explica que a palavra שנה (ano), frente a cada numeral, tem por propósito indicar que cada termo deve ser lido como um número completo em si mesmo. Mais do que uma questão gramatical ou matemática, o comentário de Rashi nos convida a uma compreensão radicalmente diferente da vida: a de que ela não se desenrola como uma linha reta, mas como um desdobramento de múltiplas vidas simultâneas. Sará viveu uma primeira infância plena, cumprida aos 7 anos; uma juventude vibrante, que alcançou o seu apogeu aos 20 anos, e uma vida adulta intensa ao longo de 100 anos.
Mas o ponto conclusivo do versículo aponta para algo ainda mais profundo: a integração de si. Aos 127 anos, Sará não abandona seus “eus” anteriores; ao contrário, ela os traz consigo como uma unidade viva. Cada etapa não substitui a anterior, mas se apresenta incorporada e ressignificada.
Talvez o segredo para viver plenamente, conforme emerge dessa leitura integrada de Vaierá e Chaiei Sará, não seja a ausência de adversidades, mas a capacidade de rir delas enquanto as enfrenta. O riso de Sará em Vaierá (Gn. 18:12-15) não é ingenuidade ou desespero. É um riso que ecoa o reconhecimento do absurdo, que transforma o impossível em possibilidade, nutrido pelo desejo.
O passuk de abertura da parashá desta semana propõe uma epistemologia do envelhecimento que recusa simultaneamente o culto à juventude e a resignação da velhice.
Enquanto a sociedade do consumo descreve a vida pós-juventude como um declínio progressivo, a tradição rabínica sustenta algo radicalmente diferente: que cada tempo vivido carrega em si um valor indelével, e é esse acúmulo que nos constitui como seres verdadeiramente plenos.
Não se trata de rejeitar a juventude ou negar o envelhecimento. Trata-se de reconhecer que ambos são necessários, e que a vida plena é aquela que consegue habitar todas as suas idades simultaneamente.
Nos textos precedentes da Torá, Sará habita o silêncio. Esse silenciamento parece significar uma espécie de “não-dito”, uma marginalização social produzida pela infertilidade em uma cultura patriarcal-tribal, onde a mulher se definia primordialmente por sua capacidade reprodutiva.
Em certo ponto, a recusa vai eclodir em riso e palavra.
Esse riso — produto de uma vida de esperas, decepções e silêncios — se torna um instrumento de resiliência e reconfiguração identitária. Sara ri porque finalmente compreende que a vida não segue os cronogramas humanos. Seu riso a liberta não apenas da ansiedade pessoal, mas também da cobrança social que a havia marginalizado.
Em seu ensaio “On Laughter and Re-Membering” (2004), a estudiosa Rachel Adelman argumenta que o riso de Sará é precisamente uma reconfiguração de sua identidade fraturada pelo silenciamento. É um ato político-existencial de recusa à invisibilidade. Mais radicalmente, é exatamente o riso que concede a Sara o direito de participar do diálogo com o divino, transformando-a de expectadora silenciosa em protagonista de sua própria anunciação.
Enquanto lemos o relato da morte de Sará e do luto de Avraham, somos convidados a um exercício de memória das múltiplas narrativas bíblicas que tiveram Sará como protagonista. É como se, através da parashá, recuperássemos todas as suas vidas – a jovem que partiu de Ur, a mulher que lutou pela maternidade, a anciã que riu diante do impossível, a matriarca que moldou gerações.
A memória é o instrumento judaico por excelência para transformar a ausência em presença diante da morte. Assim como a memória nos permite trazer de volta aqueles que partiram, o riso nos permite trazer de volta a nós mesmas aqueles “eus” que habitam nossas múltiplas vidas.
O riso se revela, portanto, um recurso indispensável para transformar apagamento em presença ao longo da vida.
Que esta reflexão nos inspire a reconhecer cada etapa de nossa vida como uma como uma oportunidade de permanecer inteiros, mesmo quando tudo parece fragmentado.
Que desenvolvamos, como Sará, a capacidade de rir e, como nosso riso, possamos ecoar nossa própria voz, reivindicando nosso lugar na história e a participação no diálogo com o divino e com nossos pares.
Shabat Shalom!
Rabina Kelita Cohen
