Muitas vezes nos encontramos com a pergunta: Deus criou o ser humano ou o ser humano criou Deus? À primeira vista, ela parece resumir a tensão entre crer e não crer. Entretanto, ela apresenta duas limitações. A primeira é assumir que apenas existem essas duas opções. A segunda é usar o verbo “criar” de duas formas diferentes na mesma frase. O segundo “criar” se refere a uma fantasia, a uma imaginação enganosa. O primeiro “criar” se refere a um fato. Independentemente de acreditarmos ou não, a primeira parte descreve a fé em um ser que, de fato, fez com que o ser humano exista na realidade. A segunda parte descreve, com o mesmo verbo, um engano que justamente não existe na realidade.

Essas duas opções pressupõem um saber. A primeira afirma saber que Deus criou. A segunda afirma saber que Deus não existe e é só imaginação ou engano.

A maioria das pessoas críticas que buscam e refletem, não conseguirão afirmar nenhuma das duas partes da frase. Não se sentirão identificados com nenhuma.

A fé, com algumas exceções, é justamente a postura de quem reconhece não saber e, mesmo assim, aposta em algo sem garantias. Nesse sentido, pode ser vista como perigosa, ingênua ou justamente corajosa e necessária, uma vez que nunca sabemos com certeza absoluta e garantias totais. Nada. Nem ciência, nem economia, nem política, nem psique. 

Existe uma terceira via além das duas radicais expostas. A terceira opção dirá: “eu não sei se Deus criou, nem se existe”. Dessa posição podem derivar duas atitudes. Uma que diz: “como não sei e não tenho como saber, não me ocupo nem preocupo”. A outra diz: “não sei, mas não posso renunciar a indagar, até como forma de existir e viver”. E outros ainda dirão: “não sei, não posso provar, mas sinto ou desejo acreditar e me entrego a uma vida que acredita, sem provas, sem garantias. Apenas com a esperança de que haja algo a mais, um sentido, um bem”. Uma vez que a fé se reconhece como atitude escolhida dentro do desconhecimento, podem surgir mais duas atitudes: A) atribuir a esse Deus tudo que sou e quero. Pensar que Deus pensa como eu, age por mim e justifica tudo que faço; B) acreditar que Deus é a forma ideal de minhas aspirações. Minha ideia da justiça ideal. Da sabedoria ideal, do bem ideal.  

O primeiro diz, de fato, “eu sou Deus” e pode conduzir a fanatismos dos mais perigosos, autoimunes, sem controle, nem espaço para a crítica ou crescimento. O segundo é o oposto. Diz “eu não sou nem serei Deus, por que eu sou a aspiração constante ao divino”. O segundo se encontra sempre a caminho de alguma autocrítica, sempre no desafio, sempre no aprimoramento. O primeiro Deus é um carimbo. O segundo, um desafiador.

Na parashá da semana, aparecem pela primeira vez os famosos 10 mandamentos. No primeiro deles o divino se apresenta como teu Deus. Alguns comentaristas enfatizaram que nessa afirmação se encontra o resumo do dito acima: a identidade de Deus e seu efeito em você dependem de você. Não porque seja uma invenção enganosa. Mas porque, afinal, tudo na nossa vida depende em grande medida de como escolhemos considerá-lo. Alguns capítulos antes, Moisés perguntou o nome de Deus, e Deus respondeu: “serei quem serei”. Como se estivesse dizendo “serei para você quem você fizer de mim”.

Mordechai Kaplan, um dos maiores teólogos judeus, dizia que todos têm uma imagem de Deus —  inclusive os que não acreditam atribuem algo a Deus para poder não acreditar nele. Ele dizia que, da identidade do Deus de cada um, é possível saber bastante sobre a pessoa. 

Que escolhamos o Deus que nos desafie e dignifique mais. 

 

Shabat Shalom,

Rabino Ruben Sternschein