O que é rezar? Se vamos ao dicionário português-hebraico, encontraremos como resposta a palavra ‘lehitpalel’. E de fato, a ação de Haná, a mãe do profeta Samuel, quando se achega ao tabernáculo e derrama o seu coração diante de Deus é nomeadamente descrita como quem rezou.
va’titpalel Haná
E Haná rezou. [I Samuel 2:1]
Em cada Rosh Hashaná lemos a história de Haná e somos lembrados de que seu apelo a Deus representa uma das primeiras orações pessoais a Deus na tradição judaica, constituindo-se a base para grande parte da concepção rabínica da oração da Amidá.
Mesmo que Haná viesse a propor as bases para a nossa liturgia até os dias de hoje, esta não parece ser primeira a experiência de reza no Tanách. Baseando-se na parashá desta semana, a rabina Dra. Wendy Zierler propõe que “a criadora de caminhos espirituais feminina é, na verdade, nossa matriarca Leá”.
va’ishmá Elohim el’Leá
Deus ouviu [a oração] de Lea
[Gen. 30:17]
No entanto, talvez o mais correto seria dizer que Leá tenha sido a continuadora de caminhos espirituais, pois ao darmos um passo atrás no texto da Torá, encontraremos ainda tantas outras expressões que podemos interpretar como reza realizada por nossas matriarcas.
Continuando na porção da Torá desta semana, Rachel afirma que “Deus me julgou e também ouviu minha súplica” [Gen. 30:6]. Ao relermos a frase em forma cronológica, encontraremos que houve da parte de Rachel uma súplica, Deus a escutou (shemá koli), a julgou (danani Elohim), e logo concedeu a ela o seu pedido (va’itén li ben).
Mesmo antes das duas irmãs, a sogra de ambas, Rivká, demanda de Deus entendimento, e Deus responde diretamente a ela.
Va’teléch lidrosh et Adonai… va’iomer Adonai lá.
E foi exigir a Adonai… e falou Adonai a ela.
[Gen. 25:22-23]
Lidrosh é o verbo que compartilha a mesma raíz da palavra drash, que o princípio da exegese, da interpretação – o princípio judaico do estudo. Aqui vemos uma mulher que reza com atitude, que se move em direção a (va’teléch), que demanda por entender. Ela não fica passiva diante de Deus, e tampouco Deus lhe é indiferente. Acontece ali um diálogo.
Um passo atrás, encontramos a conversa de Sará com Deus (ou quem sabe, a discussão!): “E Sara disse: eu não ri. E Deus disse: Ah, você riu sim”. [Gen. 18:15]
Estas e tantas outras passagens, ao serem colocadas lado a lado, nos ensinam ao menos duas coisas importantes para responder à pergunta inicial: (1) que não há um verbo único para expressar a reza; e (2) que a reza não acontece de uma forma única, mas que ela é sempre um diálogo.
A palavra hebraica para reza, tefilá (תפלה), compartilha a mesma raíz do verbo palel (פלל), julgar ou intervir e do verbo reflexivo mitpalel, rezar-se ou julgar-se, ou ainda, intervir sobre si mesmo. De uma perspectiva semântica, podemos interpretar a reza como um ato individual, introspectivo, um diálogo interno. Mas a palavra tefilá também está relacionada ao verbo (usado no hebraico mishnaico) tofel, anexar, unir ou conectar. Nesse contexto, a reza pode ser um meio não apenas de nos conectarmos conosco mesmos, mas de nos conectar com Deus.
Que possamos, nesse diálogo, encontrar espaço para derramar nossos corações, expressando os sentimentos e anseios mais profundos da nossa alma.
Shabat Shalom!
Rabina Kelita Cohen
Academia Judaica