Fizemos um intenso exercício de retorno ao longo de quase 40 dias, que inclui todo o mês de Elul, somados aos 10 dias dos Iamim Noraim. Nesse percurso, a palavra Teshuvá nos acompanhou em suas múltiplas acepções: como retorno, arrependimento e resposta. Esse movimento culmina no que acontece agora, quando uma vez mais, recomeçamos. Reiniciamos a leitura da Torá e, outra vez, recontamos a história da criação. 

E lá vamos nós, partindo da primeira palavra da Torá, que é Bereshit – usualmente traduzida como “no começo”. Em termos gramaticais da língua hebraica, nos deparamos com um primeiro estranhamento: para que seja realmente “no começo”, deveria ser Bareshit. Mas da forma como está apresentada, pressupõe o início de uma construção gramatical, na qual dois substantivos se unem para formar um novo conceito, tal como “sala” + “aula”, produziria a locução substantiva “sala de aula”. Assim, voltando à primeira palavra da Torá, poderíamos lê-la como “no começo de…”, ficando assim, um conceito inacabado.

E, ao não ter um significado fechado em si mesmo, abre-se, portanto, as portas para outras possibilidades interpretativas que a palavra nos brinda. Se pensamos na letra Bet, inicial da palavra Bereshit, não como a preposição “em”, mas como o numeral “2”, em vez de lê-la como “no começo”, estaríamos diante de um recomeço, com a possibilidade de começar novamente, tendo uma segunda chance. Aqui nos reconectamos com todo o recorrido do período anterior das Grandes Festas. Em certa medida, faz sentido pensar que a Torá possa não apenas dizer aqui de uma criação ex nihilo (do nada).  

Bereshit bará Elohim…  

Apesar do verbo “bará”, “criou”, ser um verbo que sugere uma criação a partir do nada – e, portanto, um ato exclusivamente divino – no versículo seguinte, alguns elementos aparecem sem qualquer menção prévia da sua criação, como é o caso da água (Gen. 1:2). A descrição completa da criação em Gênesis 1 e 2 joga com três verbos para descrever diferentes aspectos do ato de criar: bará (criou), assá (fez) e iatsar (formou). Na complexidade do criar, as três ações nos revelam um processo dinâmico, que envolve desde criar algo a partir do nada, somado a uma atividade divina (ou humana) como um fazer, e arrematando com formar ou modelar algo a partir do que já fora criado. Deus criou céus e terra (1:1); convocou a luz à existência (1:3) e diferenciou luz de escuridão (1:4); fez os luzeiros no firmamento (1:16) e os animais que vivem sobre a terra (1:25); criou as criaturas marinhas (1:21); e formou o ser humano do pó da terra (2:7).  

Daqui depreendemos que é possível transformar o que já existe, remodelar o que parece caótico, renovar o que está inerte e recomeçar. Nós, os humanos, fomos dotados de qualidades criativas e criadoras, e somos convidados por Deus a usar tais qualidades com responsabilidade (2:19). No Pirkei Avot (3:14) aprendemos do Rabi Akiva que mais do que a dádiva de termos sido criados à imagem de Deus, temos o privilégio de conhecer que somos a imagem de Deus. Este ensinamento nos convoca a sermos responsáveis pelo conhecimento. Nossa capacidade de conhecer nos torna responsáveis pela criação e nos outorga o poder de recriar. 

Que neste momento de recomeços, possamos colocar nossa criatividade e capacidade criadora a serviço de pôr ordem onde houver confusão; ter bom senso para diferenciar e discernir o que é bom e justo, fazendo frente às injustiças; construir caminhos de justiça e paz pelos quais outros também possam trilhar; formar nas pessoas uma alma sensível às necessidades alheias, como um dia foi soprada nas nossas narinas uma neshamá que nos dotou de humanidade; e fazer um mundo melhor para esta e as próximas gerações.

 

Shabat Shalom! 

Kelita Cohen

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