
Podemos ter responsabilidade pelo que ignoramos?
A lei diz que ignorá-la não nos isenta do dever de cumpri-la. Por outro lado, muitas vezes nos desculpamos dizendo: “não sabia… não sabia que isso era proibido, que aquilo era seu, que você não gostava de tal coisa, que você não teve aquela intenção, que você não sabia…”
A filósofa Hannah Arendt sustenta que a pessoa nunca tem a mínima ideia do que está fazendo. Mesmo quando acha que sim, sempre há muito mais que escapa ao seu controle: nas suas ideias, nas suas intenções e motivações, nos impactos que geram suas ações.
Mas, se assim for, poderíamos isentar todas as pessoas de quase tudo?
A parashá da semana inclui um versículo que estabelece:
“As coisas ocultas pertencem ao Eterno, nosso Deus. Porém, as reveladas nos pertencem a nós e nossos filhos para sempre.”
Esta frase foi adotada pela reza central das Grandes Festas (Amidá) com o seguinte acréscimo:
“O que nos foi revelado (dos nossos erros e transgressões) já declaramos; o oculto a Ti é revelado para apagar e perdoar com misericórdia e compaixão…”
Ou seja, somos responsáveis apenas pelo que conhecemos, mas cientes de que há muito mais, e assumimos a necessidade de limpar também o que sujamos sem consciência.
O tratado talmúdico de Iomá nos conta sobre um conflito entre sábios, aluno e mestre, no qual o mestre não perdoou uma ofensa do aluno por longos anos, apesar deste último ter pedido perdão humildemente, no mínimo a cada véspera de Yom Kipur, e apesar de estar estabelecido na lei que, após três vezes, o ofensor fica isento e a culpa passa ao ofendido que não perdoa.
Uma das explicações que dá o Talmud para esta exceção é que o mestre viu num sonho que o aluno seria seu sucessor. O filósofo Levinas explica: o aluno teria ambições ainda não reveladas a ele mesmo, pelas quais estaria agindo tão cedo com certa arrogância com a qual ofendeu o mestre. Em outras palavras, o ofensor precisa ter consciência de seu erro para pedir perdão e ser perdoado. Neste caso, mesmo pedindo perdão, o aluno não tinha consciência de suas intenções mais profundas e futuras e, portanto, não poderia se arrepender delas nem pedir e obter o perdão.
E como estabeleceria isto o Talmud em contradição com a frase da Torá de nossa parashá?
Talvez a ideia de que o revelado é nossa responsabilidade para sempre se refira a tudo o que pode ser revelado por nós mesmos, mas ainda não foi. Talvez a frase da parashá seja um convite a viver a coragem de assumir que sempre temos mais para saber de tudo, especialmente de nossas verdadeiras capacidades e motivações — e esse saber nos compromete.
Shabat Shalom
Rabino Dr. Ruben Sternschein